terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Mais um capítulo, parte II

E, assim, vamos a Lincoln, esse meu camarada que era conhecido pelo seu jeito estranho de viver, não sei se consigo construir uma boa definição, pálido talvez fosse um jeito de colocar as coisas, e, bem, que palidez seria essa? Muito difícil explicar, talvez eu começasse dizendo que a palidez por si só não diz muito, até porque eu não posso negar nem mesmo a minha própria palidez e de mais quem quer que seja, pois, já diria Louise, grande Louise e seu olhar inquieto e suas mãos nervosas, nesse tempo, ou se é pálido, ou se é canalha - eu certamente devo ser as duas coisas, sim, sim, e mais outras tantas -, mas, façamos assim, contarei mais sobre Lincoln, ele morava em um quarto construído separado da casa onde morava sua mãe, no mesmo terreno; às vezes eu me perguntava se ele, já um homem com mais de trinta anos, não tinha vergonha de morar sob a asa protetora dela, enfim, parecia que não, e Lincoln era o único cara que eu conhecia que não saía de casa não por medo de assalto ou ataque de abelhas assassinas, aliás, não sei se já lhe contei a história das abelhas assassinas, seres que são uma parcela do resquício infindável de um tempo selvagem envolvido e envolvendo o homem em sua ação civilizatória ao se ver derrubando florestas inteiras como numa tacada de John Fresh, correndo um home run ensandecido, e, bem, parece que nesse processo, as abelhas tinham ficado sem lugar para morar e resolveram sobrevoar a região da grande cidade e trouxeram seu território junto e isso tornou as coisas bem desagradáveis por ali, os bichos faziam suas moradas em cima dos carros, nos telhados, debaixo das camas e picavam quem quer que se aproximasse, até que um grande produtor de mel disse que daria conta da situação, precisava apenas que lhe arranjassem um grande terreno e isso não era algo fácil, afinal, Nova York, meu amigo, você já entendeu, mas logo a prefeitura se encarregou da tarefa, porque as abelhas tinham deixado a cidade em alerta, e, sendo assim, despejaram alguns moradores de um cortiço no centro, houve luta, mas, você sabe como algumas coisas funcionam nessa terra banhada por Deus e os dólares, e depois derrubaram o prédio, limparam o terreno e lá foi Mr. Saint, o grande produtor de mel, e recolheu as abelhas num trabalho de dias e as reuniu naquele terreno em grandes colméias artificiais, esfregando suas mãos e vendo cifrões voarem alegremente em torno de sua cabeça inchada, porém se deu mal, muito mal Mr. Saint, tratavam-se de abelhas selvagens e quando digo selvagens, não estou pra brincadeira. Depois de devastarem as colméias e acabarem com a raça de Mr. Saint - ok, não de Mr. Saint, mas de seus empregados, é óbvio que Mr. Saint não suja as mãos não é mesmo, camaradas - elas se dirigiram para fora da cidade e acabaram com uma plantação de laranjas, por sorte não as laranjas que Johnny, Bill e eu tanto cobiçávamos para nosso empreendimento. Mas onde eu estava mesmo? Ah, sim, Lincoln, é verdade, o único cara que eu conhecia que não saía de casa simplesmente por alguns motivos difíceis de serem detectados à primeira vista. Não poderia ser de outra maneira, é certo, a mãe dele o considerava um depressivo profundo e vivia em tentativas de colocá-lo em planos de recuperação, ou então trazendo gente da igreja para tentar imprimir alguma motivação moral no homem, tudo isso rechaçado por Lincoln com alguma violência divertida, como sua confissão incrivelmente convincente de que era filho do demônio, ao último padre que viera tentar instá-lo a ser mais razoável. E assim seguia Lincoln, entre a cama e a mesa, vivendo de migalhas, dormindo ou escrevendo longos poemas, ou mesmo lendo todos os poetas irlandeses, a escória da Europa, ele dizia, nossos irmãos, com um sorriso largo no rosto, e havia pó pelo chão e teias de aranha no teto e ele não limpava nunca o quarto e não deixava que o fizessem, como certa vez em que Bill resolveu engendrar uma faxina no lugar e foi barrado impassivelmente por Lincoln e me refiro a Bill, o indomável-cheio-de-energia, você sabe, mas Lincoln apenas olhou para o chão e disse, de maneira arrastada, Bill, não faça isso, com uma voz lúgubre e discreta ao mesmo tempo, e Bill retornou à casa da mãe de Lincoln, levando de volta a vassoura e ouviu dela, esse idiota, ninguém consegue tirá-lo de lá, mas aquilo era mentira, vez ou outra, durante o inverno, Lincoln saía com sua bicicleta e demonstrava grande desenvoltura pelas ruas e eu o acompanhava com minha 12 marchas e circulávamos pelas ruas frias e ele não se interessava pelas garotas que eu lhe mostrava e, sim, eu podia sentir que havia medo ali, porém, ao mesmo tempo, não posso negar que o que fazia Lincoln sorrir mesmo eram as ladeiras que encontrávamos pelo bairro, deixando que as bicicletas falassem por si próprias, soltando os freios e as mãos, indo parar em regiões até então desconhecidas por nós, por exemplo aquele bar ao Sul da rua 14, onde se vendia absinto clandestino, que eu e Lincoln comprávamos e trazíamos de volta para seu quarto empoeirado, para que bebêssemos lentamente o negócio e ele lesse um pouco de sua poesia estranha para mim, até que Bill chegava e trazia o violão e ele fazia algumas músicas madrugada adentro enquanto Lincoln pegava no sono, e das duas uma, ou eu também dormia, chapado, ou acompanhava Bill, cantando, ou mesmo rasgando a noite com minha gaita precária, e, bem, nunca levávamos garotas para lá, porque queríamos mesmo era conversar com Lincoln e ele provavelmente não se sentiria bem se as trouxéssemos, talvez nem permitisse que as as coitadas entrassem, mas ele teve uma namorada certa vez, preciso lhe dizer, chamava-se Tina, uma bibliotecária linda e silenciosa, com um cabelo muito enrolado e cheio e escuro e a pele transparente, mas a vi poucas vezes por ali, depois ela desapareceu e Lincoln nunca nos contou o desenrolar daquilo tudo e nunca insistimos, porque sabíamos que ele preferia silenciar a respeito.

Mas, bem, estive na casa de Lincoln, naquele dia, nada demais, apenas uma tarde amena, silenciosa, e Lincoln escrevia e eu apenas encostei em sua cama e li As sete ilhas, de Breakdown, vez ou outra eu comentava algo, ao que Lincoln respondia com algum murmúrio e Breakdown é certamente um dos maiores escritores que já li, muito menos conhecido do que todos os outros contemporâneos seus, e é difícil entender, porque suas narrativas são ondas gigantescas que varrem cidades inteiras num átimo, e tudo isso soando como um sopro de uma criança, sem o tipo de grandeza da maioria dos nossos conterrâneos e muitas vezes imagino que sua impopularidade se deve ao fato dele ter se recusado à escrita objetiva e telegráfica da escola em voga, seus escritos muito mais se desenrolavam como longos pergaminhos transbordando vida - e, sim, você já deve ter ouvido esse papo todo, eu certamente estou reproduzindo a fala de algum desses estudiosos e, bem, provavelmente a conversa esteja soando um pouco pedante então, mas, por que eu deveria me importar? É realmente um prazer falar sobre Breakdown, se você já o leu e se sentiu tocado, é possível que entenda o que estou dizendo, porque é difícil se calar quando o lemos, parece que as frases que ele atira nos atravessam e querem sair para o mundo, rebatendo nos muros, às vezes mesmo derrubando alguns, tamanha sua força, penetrando a carne e o concreto, saindo do outro lado, gerando filhos, outras pequenas frases engatinhando, escorrendo pela baba das crianças de dois anos, criando modestos campos de força que às vezes chegam a parar soldados, nem que por alguns segundos, tamanha sedução e erotismo que são elas mesmas. Sim, sim, concordo, estou exagerando aqui, Breakdown não passa de poesia, mas, enfim, passei uma tarde agradável ali, depois perguntei se Lincoln ia me mostrar o que tinha produzido naquele dia, ele respondeu que ficava para uma outra vez, porque ele não tinha terminado o negócio.

Então era noite e eu queria saber por onde andava Johnny e me dirigi para casa e ver a pensão onde eu morava me fez lembrar que o aluguel estava atrasado e subi as escadas em direção ao meu quarto, logo a seguir procurei algo na geladeira, apanhei dois ovos para fritar, e além disso havia um cacho de bananas e apanhei três delas e esse foi meu jantar, então ouvi a buzina e olhei pela janela, havia um chevrolet azul parado e dentro dele estavam Bill, Johnny e Virginia e não acreditei naquilo e Bill disse, EI, VOCÊ ESTÁ PROCURANDO EMPREGO? NÃO QUER SER NOSSO SÓCIO? E é certo que metade da cidade tinha ouvido aquilo, então apanhei as outras bananas que restaram e saltei as escadas de três em três degraus, fazendo um barulho dos diabos e mergulhei para dentro do chevrolet azul e eu ainda não tinha dito, o negócio era conversível e nem preciso contar que a capota havia sido abaixada e Johnny estava sentado na parte de trás do capô, com os pés no banco traseiro, ao modo de Johnny se sentar em carros conversíveis, Virginia ao volante e Bill ao lado dela, eles estavam fazendo graça, era ele que deveria mudar as marchas, ou seja, tudo precisava ser altamente sincronizado e mesmo assim Bill ainda tinha tempo para contar sobre Stella, uma garota que ele havia conhecido no centro e que ela o havia levado para o litoral e lá ele passou toda a semana até que o marido dela apareceu de surpresa e, ao contrário do que ele pensava, o cara não se enfureceu, comportou-se de maneira bastante cordial, almoçaram juntos os três e o homem até lhe ofereceu cerveja e Bill poderia ter permanecido o resto da vida ali, vivendo às custas dos dois, fazendo sexo à beira mar, mas ele disse que, subitamente, com todo o espaço que o homem lhe dera, era como se não houvesse espaço algum, e então Bill resolveu se mandar, não sem antes jogar uma partida de bilhar com o cara, um baita jogador, Bill contou, você teria gostado de jogar com o homem, Virgo, mas, de qualquer forma, ainda somos amigos, eu, Stella e Josh, seu marido, um dia desses desceremos até a praia, nós todos, Pedro, meu camarada, mas agora estamos nesse novo esquema, temos laranjas nos esperando, mas antes temos muitos pontos para marcar. E Johnny não dizia uma palavra, apenas se concentrava para manter os olhos abertos contra o vento, os olhos semicerrados, liberando pequenas gotículas de lágrimas, e Virginia dirigindo suavemente, as mãos praticamente nem tocavam no volante e ela me perguntou como iam as coisas, daquele jeito que ela costuma perguntar, tímido como de costume, mas repleto de interesse, mesmo que ela tivesse que se concentrar para dirigir a quatro mãos.

Quando vamos às laranjas, talvez eu deva ter perguntado em algum momento, logo na seqüência levantando as bananas que eu trouxera e dizendo redundantemente, eu tenho bananas, e Johnny apanhou uma e a comeu quase de uma bocada só e paramos em um bar, jogamos bilhar, bebemos uísque, saímos sem pagar, porque não tínhamos grana, paramos em uma esquina e ligamos o rádio e começamos a dançar na rua, e nisso algumas pessoas se juntaram a nós, até que um morador do prédio da frente começou a jogar ovos lá de cima, depois cada um de nós teve que dirigir um pouco para mostrar seu estilo, Virginia dirigia descontraída, lentamente, quase nunca freava, e quando o fazia, era de maneira suave, as mãos flutuando sobre o volante, os olhos concentrados na estrada, sempre à direita, trocando as marchas sem forçar o motor, falando consigo mesma, bem, agora vou entrar aqui, esta rua deve ser paralela à oito, sendo assim, duas quadras a seguir deve ter uma praça, aquela onde tem aquele homem que vende algodão doce domingo à tarde e o motorista seguinte foi Bill, ele nunca olhava para pista e nunca parava de falar conosco e tinha o pé pesadíssimo e freava sempre em cima e punha a mão esquerda para fora do carro, ou dependurada, ou gesticulando, e mexia com as garotas na rua e mexia com os caras, com as velhinhas, com os guardas, cachorros e tudo o mais. Johnny também tinha o pé pesado, esticava as marchas até o fim, levando o motor até seu limite, mas ele não tinha gosto em frear, quase nunca o fazia, preferia desviar, mesmo que para isso tivesse que ficar na contramão, ou subir nas calçadas, tirando finas dos hidrantes, fazendo-nos acreditar que era o fim, mas nunca era o fim, Johnny estava ali para dizer que não havia fim, porque logo na seqüência outro obstáculo surgia e pensávamos, agora é o fim, mas ele desviava e assim por diante. Já eu, como meus amigos definiram, era um motorista sonolento, preguiçoso, porque eu me afundava no banco e deixava uma mão no volante e outra no câmbio, e eu dirigia com a boca aberta e a língua de fora, lentamente, deixando meu corpo cair para um lado e outro, conforme vinham as curvas, e eu nunca acelerava demais e fazia uma fila de carros se construir atrás do chevrolet. Por tudo isso, concluímos que, se algo desse errado durante nosso trabalho com as laranjas, Johnny é que deveria dirigir. Mas, se tudo desse certo, Virginia seria a motorista. Bill e eu servíamos apenas para os passeios, porque éramos distraídos demais. Então Virginia queria ir ver os caras do jazz em Portsmouth e nos dirigimos para lá e não havia jazz naquela noite, o que teria nos deixado chateados, entretanto, havia um velhinho branco e calvo com um bandolim e aquilo foi mesmo bonito, passamos boa parte da noite ali, sentados num canto do velho bar de James Sun, nosso camarada, escutando a voz lúgubre do velhinho emendando uma espécie de blues rural lento e fluido, até que percebessemos que, se queríamos laranjas, deveríamos partir urgentemente e foi o que fizémos e, mal passamos pela divisão entre uma cidade e outra, a gasolina acabou, é claro, nenhum de nós tinha se lembrado desse detalhe, e Virginia estava sonolenta e Johnny também e eu repleto de conflitos, sendo um deles a questão, deveria eu faltar ao trabalho um dia mais? Bill continuava elétrico, porém sua energia não parecia muito direcionada à necessidade de conseguirmos gasolina, sendo assim, andamos por cinco quilômetros de volta para a cidade, sentamos em uma praça e ali cochilamos até que o sol nos acordasse. Depois, silenciosos e satisfeitos, cada um de nós retornou para sua devida casa, sem as laranjas, ao menos por enquanto.

Mais um capítulo, parte I

Você precisa saber, sim, é verdade, a coisa toda começa quando Johnny surge com essa idéia de roubarmos laranjas em Salt Lake, quarenta quilômetros dali, onde há toda uma grande plantação destinada ao mercado saudável de suco integral, e Johnny obviamente já tinha arquitetado praticamente todo o plano, recolheríamos dez ou doze caixas das melhores laranjas do país, aquelas grandes e suculentas e amarelas laranjas típicas do Sul, e venderíamos todas na feira, agora, é óbvio, não possuíamos um carro para o empreendimento e possuir um carro, nesse caso, era realmente imprescindível, e aí entrava Bill, alguém sempre de vista límpida, analisando a situação e concluindo que precisávamos apenas "emprestar" um possante sempre que fosse momento de "repormos nosso estoque" e que, ao ter um carro em mãos, deveríamos usá-lo com sabedoria, o que significava, além de aproveitá-lo para o transporte de nosso produto, que também usufruiríamos do tal para outros fins de maior importância, como passeios noturnos e rápidas investidas ao litoral.

E, sim, Bill não se encontrava conosco no dia D e, além desse pormenor considerável, eu me sentia, a princípio, cansado como os diabos, afinal, menos de uma hora antes eu havia estado no escritório, eu, uma mesa, um carimbo e a partir disso é desnecessário explicar a coisa toda, você certamente já sacou, mas, embora o cansaço e a ausência de Bill se fizessem sentir, Johnny e eu sabíamos, éramos grandes homens que se encontravam à beira de mais um passo decisivo em suas vidas, uma típica situação comum para as pessoas empreendedoras, da mesma maneira que havia ocorrido com nossos corajosos antepassados que por aqui haviam estado a construir um mundo mais nobre e civilizado, como o famoso Don Laerte, o espanhol, Don Laerte e sua barba hirsuta e seus cabelos hirsutos e sua alma hirsuta e, bem, se não havia Bill, a parada devia ser encarada por Johnny e eu, e o fizemos com a maior determinação possível, afinal, éramos homens com os olhos em direção ao oeste, ouro, meu camarada, ouro, e como um pioneiro dos tempos de Hick Hook Neel, Johnny apontou para um chevrolet azul e demos alguns passos na direção de nosso Eldorado, Johnny na frente, enrolando um arame em sua mão direita, perguntando-se como deveria usar o arame, e não se tratava de uma questão destinada a mim, mas a ele mesmo, tecendo uma espécie de auto encantamento, parecido com os mantras que os comanches sussurravam para si próprios, na iminência de uma batalha, e na seqüência um homem apareceu, seu rosto branco e gordo colocado na fresta do portão, parecia que ele estivera sempre ali, desde os mais remotos tempos, muito antes do chevrolet azul e Johnny e eu e o próprio portão existirem, e, ao sermos questionados por esse homem das nossas intenções para com o carro, apenas olhamos entre nós, Johnny e eu, e meu camarada mandou uma história terrivelmente inverossímel de como seu pai havia morrido em um acidente, quando se dirigia a Nebraska, um acidente envolvendo uma carreta e um carro idêntico aquele e de como seu próprio pai, depois de morto, assombrava-lhe pedindo que comprasse um chevrolet azul e terminasse a viagem a Nebraska, e, bem, será que o bom homem não se prestaria a lhe vender o automóvel e é claro que o homem disse um sonoro "não", e sentimos como se, a qualquer momento, se fizéssemos qualquer movimento errado, presenciaríamos aquele homem a mandar seus vinte e oito amigos boinas verdes saltarem de trás das plantas do belo jardim da casa para que finalmente nos matassem, depois, é claro, que também nos torturassem para que entregássemos os outros integrantes da nossa quadrilha internacional e, sendo assim, Johnny e eu giramos os calcanhares em direção ao primeiro bar que encontrássemos porque precisávamos de uma partida de bilhar e um trago, a noite estava sendo dura demais conosco.

A caminho do bar, é verdade, em algum momento aquela sensação apareceu, a mesa e o carimbo, mesmo ali, no excelentíssimo meio fio, enquanto eu galgava o mundo ao lado de Mr. Beefheart, meu Johnny, e ele criteriosamente mastigava um chiclé encontrado no bolso da calça e havia Dona Ruth, sim, Dona Ruth, porque Dona Ruth, despedida ainda naquele mesmo dia, um pouco antes da minha aventura em busca do chevrolet azul, possuía as melhores pernas, as mais torneadas maravilhas de todos os escritórios da Life Co., sendo Life Co. a mega coorporação onde eu trabalhava à época, e lhe digo, não havia nada mais agradável para se fazer nas oito horas que eu permanecia dentro do prédio sede da Life Co. do que apreciar as pernas de Dona Ruth... nem mesmo o cafezinho era tão agradável do que a imagem das pernas lisas e provavelmente cheirosas de Dona Ruth, sim, provavelmente cheirosas, eu nunca tivera o prazer de me aproximar tanto das pernas desta distinta senhora, e, uau, mas, então, nada mais havia para se ver naquele lugar, eu tinha perdido as pernas de Dona Ruth e Dona Ruth tinha perdido seu emprego, como ela compraria creme para cuidar da pele? E, meu amigo, QUE PELE MACIA AQUELA, até me lembrava a história de Maxwell Krakatov, o famoso serial killer que, naquela época tinha deixado toda a nação de cabelos em pé, o maluco sequestrava as mulheres e lhes arrancava a pele, colecionava as peles das suas vítimas, por Cristo, um obssessivo, aquele doente, mas, enfim, aquilo tudo me fazia pensar que eu não agüentaria por muito mais tempo, trabalhar para comprar comida e comprar comida pra trabalhar e ainda me encontrar destituído das pernas de Dona Ruth. Era demais.

E Johnny me tirou por um momento daquela imersão no fundo do pântano cíclico da morte, me cutucou e dispôs um copo de uísque para mim, é por conta da casa, gracejou, e, a seguir, pediu uma ficha para o garçon, mandamos ver no bilhar, o bar vazio, agradável, nos incentivava a permanecer e permanecer, e assim foi, mas logo me lembrei da Life Co. novamente, porque sim, Life Co., meu amigo, e eu contei tudo a Johnny, e ele trouxe mais uísque, e Johnny parecia estranho, lacônico de um jeito que ele não costumava ser, porque quando digo lacônico e me refiro a Johnny, não menciono a ausência de palavras, quero dizer que Johnny se apresentava com um típico silêncio à la Johnny, que é o da ausência sim de acrobacias, e eu não conseguia apreender os motivos daquilo e ele balbuciou em algum momento, as laranjas, as laranjas. Bem. Devia ser já alta madrugada e apesar da atmosfera agradável e tranqüila do bar, a noite não engrenava, nada se movia, havia as bolas coloridas do bilhar, os tacos do bilhar, o garçon, um freguês, outro, mais um, Johnny, eu, as laranjas, a Life Co., cada coisa em seu lugar; mesmo uma bela mexicana que chegou acompanhada do namorado não movia uma palha sequer, ela se sentou ao lado do namorado, o namorado se sentou do lado dela, os olhos dela estavam acima do nariz, o nariz acima da boca, a boca acima do queixo e assim por diante, como deve ser. Suspirei em algum momento e já era muito tarde, fui a pé para casa e, quando deitei, o relógio marcava quase quinze para as seis e, como verdadeiro trabalhador que era, acordei às seis em ponto, firme até onde poderia, e foi neste estado que escorreguei pela cama; quando dei conta de mim, havia uma multidão dentro do trem que me cercava, me acomodava em pé, e assim dormi, e assim terminei em Point Ville, já sentado em um banco, sem saber como, há vinte quilômetros da Life Co. Jesus! Tive um pesadelo terrível durante esse cochilo, no meio da barriga, Dona Ruth tinha uma boca enorme e de lá uma voz medonha dizia coisas terríveis e Dona Ruth depois arrancava meu pau com as mãos ágeis de datilógrafa e dava o negócio para a boca comer e, rapaz! Eu estava realmente muito atrasado! Decidi não trabalhar, vomitei em uma lixeira, bebi um café, comprei uma passagem de volta, retornei dormindo todo o caminho, minha cabeça doía, quase passei direto pela estação onde devia saltar, saltei, parei em uma lanchonete, tomei um desjejum digno, olhei para a rua, havia um sol tímido, senti-me forte, um verdadeiro touro selvagem do oeste, assobiei para um garota que passava na rua, ela sorriu para mim, resolvi parar na casa de Lincoln, meu camarada Lincoln, e torci para que a idéia das laranjas realmente desse frutos.