terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Mais um capítulo, parte II

E, assim, vamos a Lincoln, esse meu camarada que era conhecido pelo seu jeito estranho de viver, não sei se consigo construir uma boa definição, pálido talvez fosse um jeito de colocar as coisas, e, bem, que palidez seria essa? Muito difícil explicar, talvez eu começasse dizendo que a palidez por si só não diz muito, até porque eu não posso negar nem mesmo a minha própria palidez e de mais quem quer que seja, pois, já diria Louise, grande Louise e seu olhar inquieto e suas mãos nervosas, nesse tempo, ou se é pálido, ou se é canalha - eu certamente devo ser as duas coisas, sim, sim, e mais outras tantas -, mas, façamos assim, contarei mais sobre Lincoln, ele morava em um quarto construído separado da casa onde morava sua mãe, no mesmo terreno; às vezes eu me perguntava se ele, já um homem com mais de trinta anos, não tinha vergonha de morar sob a asa protetora dela, enfim, parecia que não, e Lincoln era o único cara que eu conhecia que não saía de casa não por medo de assalto ou ataque de abelhas assassinas, aliás, não sei se já lhe contei a história das abelhas assassinas, seres que são uma parcela do resquício infindável de um tempo selvagem envolvido e envolvendo o homem em sua ação civilizatória ao se ver derrubando florestas inteiras como numa tacada de John Fresh, correndo um home run ensandecido, e, bem, parece que nesse processo, as abelhas tinham ficado sem lugar para morar e resolveram sobrevoar a região da grande cidade e trouxeram seu território junto e isso tornou as coisas bem desagradáveis por ali, os bichos faziam suas moradas em cima dos carros, nos telhados, debaixo das camas e picavam quem quer que se aproximasse, até que um grande produtor de mel disse que daria conta da situação, precisava apenas que lhe arranjassem um grande terreno e isso não era algo fácil, afinal, Nova York, meu amigo, você já entendeu, mas logo a prefeitura se encarregou da tarefa, porque as abelhas tinham deixado a cidade em alerta, e, sendo assim, despejaram alguns moradores de um cortiço no centro, houve luta, mas, você sabe como algumas coisas funcionam nessa terra banhada por Deus e os dólares, e depois derrubaram o prédio, limparam o terreno e lá foi Mr. Saint, o grande produtor de mel, e recolheu as abelhas num trabalho de dias e as reuniu naquele terreno em grandes colméias artificiais, esfregando suas mãos e vendo cifrões voarem alegremente em torno de sua cabeça inchada, porém se deu mal, muito mal Mr. Saint, tratavam-se de abelhas selvagens e quando digo selvagens, não estou pra brincadeira. Depois de devastarem as colméias e acabarem com a raça de Mr. Saint - ok, não de Mr. Saint, mas de seus empregados, é óbvio que Mr. Saint não suja as mãos não é mesmo, camaradas - elas se dirigiram para fora da cidade e acabaram com uma plantação de laranjas, por sorte não as laranjas que Johnny, Bill e eu tanto cobiçávamos para nosso empreendimento. Mas onde eu estava mesmo? Ah, sim, Lincoln, é verdade, o único cara que eu conhecia que não saía de casa simplesmente por alguns motivos difíceis de serem detectados à primeira vista. Não poderia ser de outra maneira, é certo, a mãe dele o considerava um depressivo profundo e vivia em tentativas de colocá-lo em planos de recuperação, ou então trazendo gente da igreja para tentar imprimir alguma motivação moral no homem, tudo isso rechaçado por Lincoln com alguma violência divertida, como sua confissão incrivelmente convincente de que era filho do demônio, ao último padre que viera tentar instá-lo a ser mais razoável. E assim seguia Lincoln, entre a cama e a mesa, vivendo de migalhas, dormindo ou escrevendo longos poemas, ou mesmo lendo todos os poetas irlandeses, a escória da Europa, ele dizia, nossos irmãos, com um sorriso largo no rosto, e havia pó pelo chão e teias de aranha no teto e ele não limpava nunca o quarto e não deixava que o fizessem, como certa vez em que Bill resolveu engendrar uma faxina no lugar e foi barrado impassivelmente por Lincoln e me refiro a Bill, o indomável-cheio-de-energia, você sabe, mas Lincoln apenas olhou para o chão e disse, de maneira arrastada, Bill, não faça isso, com uma voz lúgubre e discreta ao mesmo tempo, e Bill retornou à casa da mãe de Lincoln, levando de volta a vassoura e ouviu dela, esse idiota, ninguém consegue tirá-lo de lá, mas aquilo era mentira, vez ou outra, durante o inverno, Lincoln saía com sua bicicleta e demonstrava grande desenvoltura pelas ruas e eu o acompanhava com minha 12 marchas e circulávamos pelas ruas frias e ele não se interessava pelas garotas que eu lhe mostrava e, sim, eu podia sentir que havia medo ali, porém, ao mesmo tempo, não posso negar que o que fazia Lincoln sorrir mesmo eram as ladeiras que encontrávamos pelo bairro, deixando que as bicicletas falassem por si próprias, soltando os freios e as mãos, indo parar em regiões até então desconhecidas por nós, por exemplo aquele bar ao Sul da rua 14, onde se vendia absinto clandestino, que eu e Lincoln comprávamos e trazíamos de volta para seu quarto empoeirado, para que bebêssemos lentamente o negócio e ele lesse um pouco de sua poesia estranha para mim, até que Bill chegava e trazia o violão e ele fazia algumas músicas madrugada adentro enquanto Lincoln pegava no sono, e das duas uma, ou eu também dormia, chapado, ou acompanhava Bill, cantando, ou mesmo rasgando a noite com minha gaita precária, e, bem, nunca levávamos garotas para lá, porque queríamos mesmo era conversar com Lincoln e ele provavelmente não se sentiria bem se as trouxéssemos, talvez nem permitisse que as as coitadas entrassem, mas ele teve uma namorada certa vez, preciso lhe dizer, chamava-se Tina, uma bibliotecária linda e silenciosa, com um cabelo muito enrolado e cheio e escuro e a pele transparente, mas a vi poucas vezes por ali, depois ela desapareceu e Lincoln nunca nos contou o desenrolar daquilo tudo e nunca insistimos, porque sabíamos que ele preferia silenciar a respeito.

Mas, bem, estive na casa de Lincoln, naquele dia, nada demais, apenas uma tarde amena, silenciosa, e Lincoln escrevia e eu apenas encostei em sua cama e li As sete ilhas, de Breakdown, vez ou outra eu comentava algo, ao que Lincoln respondia com algum murmúrio e Breakdown é certamente um dos maiores escritores que já li, muito menos conhecido do que todos os outros contemporâneos seus, e é difícil entender, porque suas narrativas são ondas gigantescas que varrem cidades inteiras num átimo, e tudo isso soando como um sopro de uma criança, sem o tipo de grandeza da maioria dos nossos conterrâneos e muitas vezes imagino que sua impopularidade se deve ao fato dele ter se recusado à escrita objetiva e telegráfica da escola em voga, seus escritos muito mais se desenrolavam como longos pergaminhos transbordando vida - e, sim, você já deve ter ouvido esse papo todo, eu certamente estou reproduzindo a fala de algum desses estudiosos e, bem, provavelmente a conversa esteja soando um pouco pedante então, mas, por que eu deveria me importar? É realmente um prazer falar sobre Breakdown, se você já o leu e se sentiu tocado, é possível que entenda o que estou dizendo, porque é difícil se calar quando o lemos, parece que as frases que ele atira nos atravessam e querem sair para o mundo, rebatendo nos muros, às vezes mesmo derrubando alguns, tamanha sua força, penetrando a carne e o concreto, saindo do outro lado, gerando filhos, outras pequenas frases engatinhando, escorrendo pela baba das crianças de dois anos, criando modestos campos de força que às vezes chegam a parar soldados, nem que por alguns segundos, tamanha sedução e erotismo que são elas mesmas. Sim, sim, concordo, estou exagerando aqui, Breakdown não passa de poesia, mas, enfim, passei uma tarde agradável ali, depois perguntei se Lincoln ia me mostrar o que tinha produzido naquele dia, ele respondeu que ficava para uma outra vez, porque ele não tinha terminado o negócio.

Então era noite e eu queria saber por onde andava Johnny e me dirigi para casa e ver a pensão onde eu morava me fez lembrar que o aluguel estava atrasado e subi as escadas em direção ao meu quarto, logo a seguir procurei algo na geladeira, apanhei dois ovos para fritar, e além disso havia um cacho de bananas e apanhei três delas e esse foi meu jantar, então ouvi a buzina e olhei pela janela, havia um chevrolet azul parado e dentro dele estavam Bill, Johnny e Virginia e não acreditei naquilo e Bill disse, EI, VOCÊ ESTÁ PROCURANDO EMPREGO? NÃO QUER SER NOSSO SÓCIO? E é certo que metade da cidade tinha ouvido aquilo, então apanhei as outras bananas que restaram e saltei as escadas de três em três degraus, fazendo um barulho dos diabos e mergulhei para dentro do chevrolet azul e eu ainda não tinha dito, o negócio era conversível e nem preciso contar que a capota havia sido abaixada e Johnny estava sentado na parte de trás do capô, com os pés no banco traseiro, ao modo de Johnny se sentar em carros conversíveis, Virginia ao volante e Bill ao lado dela, eles estavam fazendo graça, era ele que deveria mudar as marchas, ou seja, tudo precisava ser altamente sincronizado e mesmo assim Bill ainda tinha tempo para contar sobre Stella, uma garota que ele havia conhecido no centro e que ela o havia levado para o litoral e lá ele passou toda a semana até que o marido dela apareceu de surpresa e, ao contrário do que ele pensava, o cara não se enfureceu, comportou-se de maneira bastante cordial, almoçaram juntos os três e o homem até lhe ofereceu cerveja e Bill poderia ter permanecido o resto da vida ali, vivendo às custas dos dois, fazendo sexo à beira mar, mas ele disse que, subitamente, com todo o espaço que o homem lhe dera, era como se não houvesse espaço algum, e então Bill resolveu se mandar, não sem antes jogar uma partida de bilhar com o cara, um baita jogador, Bill contou, você teria gostado de jogar com o homem, Virgo, mas, de qualquer forma, ainda somos amigos, eu, Stella e Josh, seu marido, um dia desses desceremos até a praia, nós todos, Pedro, meu camarada, mas agora estamos nesse novo esquema, temos laranjas nos esperando, mas antes temos muitos pontos para marcar. E Johnny não dizia uma palavra, apenas se concentrava para manter os olhos abertos contra o vento, os olhos semicerrados, liberando pequenas gotículas de lágrimas, e Virginia dirigindo suavemente, as mãos praticamente nem tocavam no volante e ela me perguntou como iam as coisas, daquele jeito que ela costuma perguntar, tímido como de costume, mas repleto de interesse, mesmo que ela tivesse que se concentrar para dirigir a quatro mãos.

Quando vamos às laranjas, talvez eu deva ter perguntado em algum momento, logo na seqüência levantando as bananas que eu trouxera e dizendo redundantemente, eu tenho bananas, e Johnny apanhou uma e a comeu quase de uma bocada só e paramos em um bar, jogamos bilhar, bebemos uísque, saímos sem pagar, porque não tínhamos grana, paramos em uma esquina e ligamos o rádio e começamos a dançar na rua, e nisso algumas pessoas se juntaram a nós, até que um morador do prédio da frente começou a jogar ovos lá de cima, depois cada um de nós teve que dirigir um pouco para mostrar seu estilo, Virginia dirigia descontraída, lentamente, quase nunca freava, e quando o fazia, era de maneira suave, as mãos flutuando sobre o volante, os olhos concentrados na estrada, sempre à direita, trocando as marchas sem forçar o motor, falando consigo mesma, bem, agora vou entrar aqui, esta rua deve ser paralela à oito, sendo assim, duas quadras a seguir deve ter uma praça, aquela onde tem aquele homem que vende algodão doce domingo à tarde e o motorista seguinte foi Bill, ele nunca olhava para pista e nunca parava de falar conosco e tinha o pé pesadíssimo e freava sempre em cima e punha a mão esquerda para fora do carro, ou dependurada, ou gesticulando, e mexia com as garotas na rua e mexia com os caras, com as velhinhas, com os guardas, cachorros e tudo o mais. Johnny também tinha o pé pesado, esticava as marchas até o fim, levando o motor até seu limite, mas ele não tinha gosto em frear, quase nunca o fazia, preferia desviar, mesmo que para isso tivesse que ficar na contramão, ou subir nas calçadas, tirando finas dos hidrantes, fazendo-nos acreditar que era o fim, mas nunca era o fim, Johnny estava ali para dizer que não havia fim, porque logo na seqüência outro obstáculo surgia e pensávamos, agora é o fim, mas ele desviava e assim por diante. Já eu, como meus amigos definiram, era um motorista sonolento, preguiçoso, porque eu me afundava no banco e deixava uma mão no volante e outra no câmbio, e eu dirigia com a boca aberta e a língua de fora, lentamente, deixando meu corpo cair para um lado e outro, conforme vinham as curvas, e eu nunca acelerava demais e fazia uma fila de carros se construir atrás do chevrolet. Por tudo isso, concluímos que, se algo desse errado durante nosso trabalho com as laranjas, Johnny é que deveria dirigir. Mas, se tudo desse certo, Virginia seria a motorista. Bill e eu servíamos apenas para os passeios, porque éramos distraídos demais. Então Virginia queria ir ver os caras do jazz em Portsmouth e nos dirigimos para lá e não havia jazz naquela noite, o que teria nos deixado chateados, entretanto, havia um velhinho branco e calvo com um bandolim e aquilo foi mesmo bonito, passamos boa parte da noite ali, sentados num canto do velho bar de James Sun, nosso camarada, escutando a voz lúgubre do velhinho emendando uma espécie de blues rural lento e fluido, até que percebessemos que, se queríamos laranjas, deveríamos partir urgentemente e foi o que fizémos e, mal passamos pela divisão entre uma cidade e outra, a gasolina acabou, é claro, nenhum de nós tinha se lembrado desse detalhe, e Virginia estava sonolenta e Johnny também e eu repleto de conflitos, sendo um deles a questão, deveria eu faltar ao trabalho um dia mais? Bill continuava elétrico, porém sua energia não parecia muito direcionada à necessidade de conseguirmos gasolina, sendo assim, andamos por cinco quilômetros de volta para a cidade, sentamos em uma praça e ali cochilamos até que o sol nos acordasse. Depois, silenciosos e satisfeitos, cada um de nós retornou para sua devida casa, sem as laranjas, ao menos por enquanto.

Mais um capítulo, parte I

Você precisa saber, sim, é verdade, a coisa toda começa quando Johnny surge com essa idéia de roubarmos laranjas em Salt Lake, quarenta quilômetros dali, onde há toda uma grande plantação destinada ao mercado saudável de suco integral, e Johnny obviamente já tinha arquitetado praticamente todo o plano, recolheríamos dez ou doze caixas das melhores laranjas do país, aquelas grandes e suculentas e amarelas laranjas típicas do Sul, e venderíamos todas na feira, agora, é óbvio, não possuíamos um carro para o empreendimento e possuir um carro, nesse caso, era realmente imprescindível, e aí entrava Bill, alguém sempre de vista límpida, analisando a situação e concluindo que precisávamos apenas "emprestar" um possante sempre que fosse momento de "repormos nosso estoque" e que, ao ter um carro em mãos, deveríamos usá-lo com sabedoria, o que significava, além de aproveitá-lo para o transporte de nosso produto, que também usufruiríamos do tal para outros fins de maior importância, como passeios noturnos e rápidas investidas ao litoral.

E, sim, Bill não se encontrava conosco no dia D e, além desse pormenor considerável, eu me sentia, a princípio, cansado como os diabos, afinal, menos de uma hora antes eu havia estado no escritório, eu, uma mesa, um carimbo e a partir disso é desnecessário explicar a coisa toda, você certamente já sacou, mas, embora o cansaço e a ausência de Bill se fizessem sentir, Johnny e eu sabíamos, éramos grandes homens que se encontravam à beira de mais um passo decisivo em suas vidas, uma típica situação comum para as pessoas empreendedoras, da mesma maneira que havia ocorrido com nossos corajosos antepassados que por aqui haviam estado a construir um mundo mais nobre e civilizado, como o famoso Don Laerte, o espanhol, Don Laerte e sua barba hirsuta e seus cabelos hirsutos e sua alma hirsuta e, bem, se não havia Bill, a parada devia ser encarada por Johnny e eu, e o fizemos com a maior determinação possível, afinal, éramos homens com os olhos em direção ao oeste, ouro, meu camarada, ouro, e como um pioneiro dos tempos de Hick Hook Neel, Johnny apontou para um chevrolet azul e demos alguns passos na direção de nosso Eldorado, Johnny na frente, enrolando um arame em sua mão direita, perguntando-se como deveria usar o arame, e não se tratava de uma questão destinada a mim, mas a ele mesmo, tecendo uma espécie de auto encantamento, parecido com os mantras que os comanches sussurravam para si próprios, na iminência de uma batalha, e na seqüência um homem apareceu, seu rosto branco e gordo colocado na fresta do portão, parecia que ele estivera sempre ali, desde os mais remotos tempos, muito antes do chevrolet azul e Johnny e eu e o próprio portão existirem, e, ao sermos questionados por esse homem das nossas intenções para com o carro, apenas olhamos entre nós, Johnny e eu, e meu camarada mandou uma história terrivelmente inverossímel de como seu pai havia morrido em um acidente, quando se dirigia a Nebraska, um acidente envolvendo uma carreta e um carro idêntico aquele e de como seu próprio pai, depois de morto, assombrava-lhe pedindo que comprasse um chevrolet azul e terminasse a viagem a Nebraska, e, bem, será que o bom homem não se prestaria a lhe vender o automóvel e é claro que o homem disse um sonoro "não", e sentimos como se, a qualquer momento, se fizéssemos qualquer movimento errado, presenciaríamos aquele homem a mandar seus vinte e oito amigos boinas verdes saltarem de trás das plantas do belo jardim da casa para que finalmente nos matassem, depois, é claro, que também nos torturassem para que entregássemos os outros integrantes da nossa quadrilha internacional e, sendo assim, Johnny e eu giramos os calcanhares em direção ao primeiro bar que encontrássemos porque precisávamos de uma partida de bilhar e um trago, a noite estava sendo dura demais conosco.

A caminho do bar, é verdade, em algum momento aquela sensação apareceu, a mesa e o carimbo, mesmo ali, no excelentíssimo meio fio, enquanto eu galgava o mundo ao lado de Mr. Beefheart, meu Johnny, e ele criteriosamente mastigava um chiclé encontrado no bolso da calça e havia Dona Ruth, sim, Dona Ruth, porque Dona Ruth, despedida ainda naquele mesmo dia, um pouco antes da minha aventura em busca do chevrolet azul, possuía as melhores pernas, as mais torneadas maravilhas de todos os escritórios da Life Co., sendo Life Co. a mega coorporação onde eu trabalhava à época, e lhe digo, não havia nada mais agradável para se fazer nas oito horas que eu permanecia dentro do prédio sede da Life Co. do que apreciar as pernas de Dona Ruth... nem mesmo o cafezinho era tão agradável do que a imagem das pernas lisas e provavelmente cheirosas de Dona Ruth, sim, provavelmente cheirosas, eu nunca tivera o prazer de me aproximar tanto das pernas desta distinta senhora, e, uau, mas, então, nada mais havia para se ver naquele lugar, eu tinha perdido as pernas de Dona Ruth e Dona Ruth tinha perdido seu emprego, como ela compraria creme para cuidar da pele? E, meu amigo, QUE PELE MACIA AQUELA, até me lembrava a história de Maxwell Krakatov, o famoso serial killer que, naquela época tinha deixado toda a nação de cabelos em pé, o maluco sequestrava as mulheres e lhes arrancava a pele, colecionava as peles das suas vítimas, por Cristo, um obssessivo, aquele doente, mas, enfim, aquilo tudo me fazia pensar que eu não agüentaria por muito mais tempo, trabalhar para comprar comida e comprar comida pra trabalhar e ainda me encontrar destituído das pernas de Dona Ruth. Era demais.

E Johnny me tirou por um momento daquela imersão no fundo do pântano cíclico da morte, me cutucou e dispôs um copo de uísque para mim, é por conta da casa, gracejou, e, a seguir, pediu uma ficha para o garçon, mandamos ver no bilhar, o bar vazio, agradável, nos incentivava a permanecer e permanecer, e assim foi, mas logo me lembrei da Life Co. novamente, porque sim, Life Co., meu amigo, e eu contei tudo a Johnny, e ele trouxe mais uísque, e Johnny parecia estranho, lacônico de um jeito que ele não costumava ser, porque quando digo lacônico e me refiro a Johnny, não menciono a ausência de palavras, quero dizer que Johnny se apresentava com um típico silêncio à la Johnny, que é o da ausência sim de acrobacias, e eu não conseguia apreender os motivos daquilo e ele balbuciou em algum momento, as laranjas, as laranjas. Bem. Devia ser já alta madrugada e apesar da atmosfera agradável e tranqüila do bar, a noite não engrenava, nada se movia, havia as bolas coloridas do bilhar, os tacos do bilhar, o garçon, um freguês, outro, mais um, Johnny, eu, as laranjas, a Life Co., cada coisa em seu lugar; mesmo uma bela mexicana que chegou acompanhada do namorado não movia uma palha sequer, ela se sentou ao lado do namorado, o namorado se sentou do lado dela, os olhos dela estavam acima do nariz, o nariz acima da boca, a boca acima do queixo e assim por diante, como deve ser. Suspirei em algum momento e já era muito tarde, fui a pé para casa e, quando deitei, o relógio marcava quase quinze para as seis e, como verdadeiro trabalhador que era, acordei às seis em ponto, firme até onde poderia, e foi neste estado que escorreguei pela cama; quando dei conta de mim, havia uma multidão dentro do trem que me cercava, me acomodava em pé, e assim dormi, e assim terminei em Point Ville, já sentado em um banco, sem saber como, há vinte quilômetros da Life Co. Jesus! Tive um pesadelo terrível durante esse cochilo, no meio da barriga, Dona Ruth tinha uma boca enorme e de lá uma voz medonha dizia coisas terríveis e Dona Ruth depois arrancava meu pau com as mãos ágeis de datilógrafa e dava o negócio para a boca comer e, rapaz! Eu estava realmente muito atrasado! Decidi não trabalhar, vomitei em uma lixeira, bebi um café, comprei uma passagem de volta, retornei dormindo todo o caminho, minha cabeça doía, quase passei direto pela estação onde devia saltar, saltei, parei em uma lanchonete, tomei um desjejum digno, olhei para a rua, havia um sol tímido, senti-me forte, um verdadeiro touro selvagem do oeste, assobiei para um garota que passava na rua, ela sorriu para mim, resolvi parar na casa de Lincoln, meu camarada Lincoln, e torci para que a idéia das laranjas realmente desse frutos.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Apresentando Richard Madson.

É verdade, eu me recordo bem do Richard, irmão do Mike; Mike, três vezes preso até que lhe dessem um fim. Éramos apenas crianças, à época, literalmente. Gostava muito de poder passar as tardes sentado à cerca do Casarão, logo à esquina. (O Casarão, em cujo quintal às vezes jogávamos baseball; as árvores nas quais subíamos para depois cuspirmos nos que tinham ficado em baixo. O Casarão, de cujos donos nunca tivémos notícia. O Casarão, depois demolido para ceder lugar a um amontoado de casas, depois demolidas para cederem espaço a um conjunto de lojas, hoje decadentes.) Volta e meia apareciam os outros e nada fazíamos que não fosse matar o tempo. Em algumas ocasiões alguém aparecia com o último número dos quadrinhos do Homem Incrível, este, na época, ainda longe dos cinemas; o Homem Incrível, apenas uma bobagem para moleques, ou seja, para nós; o Homem Incrível e sua capa vermelha e seus olhos azuis, saltando por cima dos prédios então nem tão altos, superando um tipo de morte que para nós aos poucos já desaparecia: os hospitais ainda nem eram tantos; quantas vezes não desci com meu pai até o velho Honky Eagle, mistura de comanche com espanhol, para tomar as garrafadas dele e me curar de alguma gripe naquela época ainda algo quase preocupante? (Me recordo bem de meu avô e suas mãos enormes, dedos duros e repletos de calos, seus últimos meses na cama de seu quarto, aquele cheiro de fim rondando a casa toda e boa parte da nossa rua, cheiro esse que jamais me esqueci e os tantos meses que meu pai andou para cima e para baixo com sua gravata preta puída, após a morte de meu avô.) Mas também já tomávamos Lee Buffallo, o tônico para todos os males, espetacular descoberta científica e tecnológica, sempre anunciado nas rádios, durante os programas de Martin L. Brown, um verdadeiro herói para mim - quantas canções não aprendi e ainda hoje não cantarolo em tardes amenas, anunciadas, à época, pela voz aveludada de Martin L. Brown, em seu programa vespertino? E líamos o Homem Incrível - que fazia muito mais sentido do que Stonehard, mesmo que gingássemos como o próprio, um cowboy desbravador do Oeste, posto que nenhum de nós montava à cavalo - e os bandidos mereciam cada surra que levavam: eram bandidos, afinal. E eu seria como meu pai, um dia, no futuro, trabalharia em uma daquelas fábricas enormes, seria a base do progresso humano, como ele mesmo costumava dizer, ao encaçapar alguma bola no bilhar do Velho Jacob. E Richard aparecia vez em quando, no começo muito quieto, isto é, Richard nunca deixou mesmo de ser, do jeito dele, quieto, mas, no início, ele parecia ser apenas mais um de nós, mesmo que alguns fizessem mais estripulias que outros - no final, éramos mesmo apenas um bando de moleques vadiando pelo bairro. E então Richard me apareceu com uma flauta e, até aquele momento, nós, meninotes ríspidos da rua 12, nunca havíamos visto qualquer coisa parecida e, bem, para meninotes ríspidos da rua 12 - e muito provavelmente para os meninos ríspidos de muitos outros lugares - qualquer coisa não compreendida era cruelmente taxada como coisa de veado. E Richard se tornou o veado da turma, não que ele já não fosse: depois que os garotos começaram a chamá-lo de veado e mariquinhas e outros nomes como esses, pude perceber que ele realmente só podia ser veado com aqueles lábios grossos e vermelhos e a pele muito branca e os cabelos escorridos caídos nos olhos grandes e as mãos frágeis demais para que ele conseguisse subir nas árvores. E então Richard não mais freqüentava a nossa roda de colegas que ficavam no Casarão ou procurando briga com os meninos das outras ruas ou atirando em passarinhos ou lendo o Homem Incrível e comentando dele as aventuras maravilhosas. Não freqüentava em parte, porque ele sempre estava nos arredores, olhando de longe, ou se aproximando até que fosse escorraçado e isso era como as coisas se davam entre nós e Richard e. Bem. Richard hoje é músico na Orquestra Municipal e faz dupla com uma cantora folk, já gravaram um LP e tudo, e hoje ele aparece vez ou outra nas festas que a gente dá, e nos cumprimentamos cordialmente quando nos encontramos no supermercado, mas, muito antes disso, numa tarde de sol, quando eu voltava da venda de Mrs. Clieverlan, topei com Richard sentado na Praça 8, tocando sua flauta e bem. Era realmente bonito aquilo. Não titubeei em sentar ali por perto e ouvir um pouco. Nós não conversamos muito, não por má vontade, mas a verdade é que não tínhamos muito a dizer, nossas cabeças não funcionavam direito para essas coisas, muito mais a minha, eu tinha 8 ou 9 anos. Em algum momento, a seguir, eu, Pedro Miguel, um verdadeiro macho, grande representante da espécie, estava sobre o corpo de Richard e realmente aquilo estava muito bom, não sei precisar exatamente o quê, mas estava gostoso a valer, e ficamos nos mexendo um pouco, nos esfregando um no outro, atrás dos arbustos, até que um de nós se cansasse. Fui para casa sem pensar muito no assunto e Richard sumiu por um tempo e, quando Norbert lhe deu umas bifas, algumas semanas depois, atrás da Igreja, o chamando de mulherzinha dos diabos, eu realmente devo dizer que nada fiz e que realmente não tive muita vontade de fazer coisa alguma - parecia não haver mentira no meu movimento, naquela época eu realmente acreditava que Norbert bater em Richard era algo absolutamente normal.

sábado, 9 de maio de 2009

Apresentando Ginger Honeyspoon, morta ao ser atropelada em uma avenida em Nova York - segunda versão.

Sim, Josh me ligou às duas e quarenta e tantos, naquela terça-feira, numa fase em que eu me encontrava desempregado, e eu mal havia pegado no sono, mesmo assim, no instante em que ouvi a voz de Josh, não o reconheci, não compreendi nada do que ele dizia, e conseguia pensar apenas em castrar os gatos de toda a cidade, porque cantavam "nós gatos já nascemos pobres" o dia inteiro, como se me convidassem para cantar junto, porém eu não podia, ou achava que não podia, minha mãe vivia me ligando para saber se eu já tinha um novo emprego, Sr. Landblood vivia me procurando porque o aluguel estava atrasado - de novo - e eu sabia, logo Johnny apareceria, ou qualquer um de meus amigos, e algo iria acontecer, e eu já não sabia direito o que estava fazendo da vida e, sim, aquilo era ridículo, que diferença fazia se o telefone tocava às duas da tarde ou às duas da madrugada? Mas, para mim, aquilo se tornava cada vez mais apavorante, os dias em que minha sobrevivência me parecia ameaçada, como se um tiranossauro pudesse entrar porta adentro e me devorar, então finalmente reconheci a voz de Josh, esqueci os gatos, e ele me disse que Ginger havia sido atropelada, mas que, aparentemente, não havia sido nada grave; quase perguntei qual o motivo dele me ligar para me contar aquilo, mas evitei ser rude, e Josh me informou que se encontrava no Norte, com sua cia. circense, e tudo ia muito bem, mas, por isso mesmo, não poderia retornar ainda, sendo assim, perguntou se eu não poderia visitar Ginger, sim, amanhã, Josh, claro, e ele me perguntou se eu não poderia ir já naquele momento, porque as noites em um hospital eram mesmo muito solitárias e ninguém ainda havia feito uma visita a ela, então, dessa maneira, coçando os olhos e bocejando, respondi afirmativamente, e então desliguei o telefone e fui ao banheiro, tomei uma ducha, e pensei se aquilo tudo não era um sonho esquisito e quase liguei para Josh para confirmar, porém tive vergonha e carreguei a bicicleta até a rua, não sem antes comer um sanduíche de queijo do dia anterior que eu havia guardado na geladeira e agarrar minha mochila e nela botar um livro de Fireburn, o poeta cego, para dar de presente a ela.

A noite estava úmida, o asfalto ligeiramente molhado pelo orvalho; pedalei lentamente pela rua, atravessei a 23, entre os moradores de rua e as meninas da Central, 10 mangos a chupada. Parei numa loja de conveniências, na esquina com a 21, comprei dois maços de cigarros, a noite seria longa, entreguei uma nota de 10, o troco peguei em balas, mandei uma para dentro, era doce demais, fiquei enjoado, cuspi fora o negócio, enquanto montava na bicicleta, depois guardei as restantes no bolso, talvez Ginger gostasse, segui em frente, uma ambulância rasgou a Avenida, em frente ao Finger's, no mesmo local onde certa vez Ginger havia me deixado esperando horas, a pilantra, e então, é óbvio, iniciei uma longa viagem nostálgica, imaginando a primeira visão que tive de Ginger, cerca de seis anos antes, numa dessas noites enlouquecidas, e lá se encontrava ela, no Martin's, seus olhos perdidos e seu jeito confuso de dizer se gostava ou não das pessoas já ficara tão claro para mim naquele dia, e aquilo parecia problema à vista, mas havia também suas pernas tão bem desenhadas e seu jeito fluido de se mover, e seu interesse em poesia, então, já naquela noite as coisas ficaram bem estranhas para mim, se é que você me entende.

E como Ginger terminaria ficando com Josh? Bem, naquela época Ginger era apaixonada por Lincoln F. e Lincoln F. era apaixonado pela guerra que acontecia do outro lado do mundo; Lincoln F. acreditava piamente na Liberdade e havia se alistado como voluntário nas fileiras da legião estrangeira à favor da Birtsmânia, combatendo os terroristas sloveínos, sendo assim, Ginger enviava longas cartas de amor repletas de perfume de rosas para ele, e recebia como resposta raros bilhetes enxutos e telegramas de uma linha, e, desta maneira, penso poder formular a seguinte seqüência matemática: Pedro - Ginger - Lincoln F., porém, tal lógica seria derrubada logo com o fim da guerra, posto que, Lincoln F., de retorno, pediu Ginger em casamento e foi veementemente rejeitado, situação em que, finalmente, tive uma chance, sendo esta, obviamente, aproveitada, o que fazia a fórmula se tornar, então, Lincoln F. - Ginger - Pedro - Ginger, mas aquilo duraria realmente muito pouco, porque Pedro, quero dizer, eu, trouxe Josh, um amigo que eu havia conhecido na fronteira com o Canadá, sem imaginar o que aconteceria, para esta maldita cidade e, na seqüência, logo teríamos Pedro - Ginger - Josh - Ginger, o que destruiria meus planos com Ginger, e que me lançaria de volta a Elsie, para que morássemos juntos uma vez mais, não sem antes eu experimentar o inferno que é se sentir rejeitado e etecétera e isso me faz lembrar de Riverside, aquela maldita noite em que nos atrasamos e tivémos que dormir em um hotel de beira de estrada, então Ginger quis um quarto com duas camas e tudo estava bem, eu sabia exatamente em que pé as coisas andavam entre nós, mas, então, subitamente, antes de dizer boa noite, ela perguntou se eu não queria dormir com ela, e, bem, rapaz, não se nega o pedido de uma garota, não é mesmo, e yes, é claro, me deitei tranqüilamente ao lado dela, num movimento misto de quem ainda tem apenas treze anos e não sabe exatamente o que fazer e de quem é o dono do galinheiro, e, na seqüência, depois de alguns minutos, beijei-lhe os ombros e recebi uma espécie de solavanco no rosto e, é verdade, tentei mais uma ou duas vezes, afinal, aquilo poderia muito bem ser uma espécie de jogo, e era, mas não do jeito que eu imaginava, sendo assim, passei a noite olhando para o teto e, mais tarde, liguei a TV, sem arredar pé daquela maldita cama, e passava o desenho de Jimmie, o filhote de ornitorrinco, e naquele episódio, Jimmie encontrava-se só em casa e, enquanto Martha, a mãe ornitorrinco, não retornava, Jimmie resolveu comer todos os biscoitos que ficavam em cima do armário e, sendo aquilo demais para ele, acabou por vomitar tudo na pia, indo, logo depois, se esconder detrás do aparelho de televisão - aquele era seu local favorito para se esconder, porque ficava quentinho, quando a TV se encontrava ligada -; mas então a manhã despontou e saí da cama, andei até o banheiro, lavei o rosto, escovei os dentes e chamei Ginger, tínhamos que pegar a estrada.

Com aquelas imagens na mente, resolvi fazer andar o programa que estipulei enquanto tomava aquela ducha, após a ligação de Josh, o que significava descer a bicicleta até a rua, comprar cigarros, e estabelecer uma parada onde eu pudesse escrever algo a Ginger, na contracapa do Fireburn, antes de chegar ao hospital, e aquele local parecia mesmo propício para esta etapa da epopéia, uma praça com um banco instalado abaixo de um poste; desta maneira segui até o banco e me acomodei no lugar; quando abria o livro e pensava em algo, dei com um gatinho malhado, um filhotezinho desgarrado da mãe, e, como ele parecesse triste e faminto, botei-o dentro da mochila, Ginger vai gostar de você, bichano, vai te dar um nome, banho, leite, e brincar contigo, e comecei a escrita sem nenhum planejamento do que queria realmente dizer a ela.

Nunca vou me esquecer de Movetown, aquela temporada em que fizemos tanto, querida, lembra-se de Louie e Fred e Camilla, com seus cabelos curtíssimos? Fico pensando quão difícil às vezes parece ser falar sobre aqueles tempos, quero dizer, acho que você entende, embora, eu mesmo, muitas vezes não saiba bem o motivo desta dificuldade. Me recordo daquele dia em que atravessamos o rio para nos juntarmos ao pessoal-antes-odiado-do-Flitsburn, que surpresa aquela festa que antes parecia impossível, e agora estávamos lá, dançando e nos divertindo a valer com nossos ex-rivais - e eu já me pegava falando daquele jeito esquisito de Flitsburn e pensei: UAU! Isso está realmente acontecendo? O que o futuro nos guarda, isto é, se isso é possível, o que pode vir "depois", eu me perguntava, porém, querida, eu não percebi que era ali a coisa toda, não havia "depois", afinal, há quanto tempo não vejo Flitsburn? Nossa, há muito tempo, mas, e então? E eu pensava tanto como a vida seria para nós dois, Ginger, isto é, íamos ter filhos, viajaríamos o mundo, roubaríamos bancos juntos, viveríamos sem casa, morando aqui e acolá, seríamos famosos? E você estava realmente deslumbrante, naquele dia, como em todos os outros, mas naquele dia, naquele dia, oh, droga. E nem me dei conta de como era descer aquele rio, como foi que o descobrimos, quero dizer, ele esteve sempre ali, mas a gente demorou a perceber como poderia ser bacana descer a corredeira de barco, e descobrimos, cada descida era uma primeira vez e era preciso se molhar de verdade para conseguir vencer aquela imensidão de água, entrar nas ondulações da coisa toda, o rio, lembra-se? Bem. Nesse momento sigo para o hospital, crendo que certamente você está bem, o que me permitirá, como decido agora, neste exato momento, deixar apenas esse bilhete escrito nesse livro - é aquele Fireburn que você uma vez havia pedido emprestado, como você já deve ter notado -, evitando, assim, que nos encontremos, o que causaria uma situação constrangedora e desnecessária. Com amor, Pedro.

Então gostaria de fazer um salto temporal - ah, as técnicas narrativas -, sou eu de retorno do hospital, empurro a bicicleta e rio um bocado, na verdade, em algum instante, sinto que nunca vou conseguir parar de rir, e é nesse momento que paro sobre a ponte Horksheirer e digo, sem motivo aparente, para mim mesmo: nossa literatura se tornou apenas uma narrativa do quotidiano, sem ao menos imaginar o que quero dizer com aquilo, e, sendo assim, logo depois, atiro o livro de Fireburn o mais longe que consigo, penso na voz rouca da recepcionista do hospital, Ginger Honeyspoon? Lamento, senhor, mas, infelizmente, ela não resistiu à cirurgia.

Tudo isto narrei, desta exata maneira, a Bill e Virginia, em um bar, antes mesmo de me embebedar, porém, omiti que, Ginger, na realidade, se encontrava, naquele momento mesmo da narrativa, trabalhando como dançarina em alguma casa no Leste, ganhando pouco, mas aparentemente bem, ainda em forma, talvez apenas um pouco mais silenciosa do que de costume.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

E, é claro, Annie estava maluca para ver o Show de Jammie and his dogs.

por Pedro Miguel, para Revista Q.

Bem. Eu não nego que Jammie talvez ainda tenha algo a dizer, isto é, talvez ainda consiga enganchar letras inquietantes em freqüências de energia pura. Mas não sei. Isso tudo pode ser muito bem apenas mais alguma balela desses jornalistas gonzo preguiçosos - o que não é realmente um problema, digo, ser um jornalista gonzo preguiçoso, isso até tem lá o seu charme -, mas o que eu pensava logo se concretizou: Jammie, ainda que estivesse em boa forma, apesar dos mais de cinqüenta anos, mais da metade chafurdando na lama, ficava no mínimo a trinta metros da grade de proteção, o palco longe demais; às vezes era impossível dizer que era ele mesmo. Vai saber. Você, que provavelmente estava lá também, vai primeiro dizer que os grandes shows são assim mesmo. E depois talvez argumente que tem essa coisa da energia da multidão, como isso pode transformar um show em algo maravilhoso e vai falar sobre as grandes concentrações de pessoas, como são incríveis, e eu talvez até concorde em parte - daria para contra argumentar facilmente, eu acho -, mas o fato aqui é que estamos falando de Jammie and his dogs, meu amigo, eu tive três cópias em vinil de Refuse the Law, todas gastas e repostas, na minha adolescência, porque bem, era como se eu já soubesse, à época, que, de alguma maneira, Jammie pudesse nos ensinar alguma coisa sobre desobediência, num tempo em que, quero crer, berrar em um microfone ainda era mesmo um estilo de vida e não apenas um negócio que você pode comprar à 10 dólares no supermercado, por mais ingênuo que dizer isso pareça.

E então estamos nós dois e mais dois amigos de Annie, Jerry e Louie, e há pelo menos o quê? Pelo menos umas trinta mil pessoas por ali e sim, gosto de me meter em enrascadas, mas. Quero dizer, às vezes é ótimo se meter em enrascadas, pneus furados, caminhos obscuros, falta de grana durante a noite, gente chata, vazamentos no telhado, brigas com vizinhos, fila no banco, tudo isso pode se tornar uma pequena aventurazinha, se você deixar rolar. Se. E, é claro, o fato daquilo estar cheio como o inferno e das pessoas todas pisarem no meu pé e da cerveja custar cinco vezes mais e de que Jammie, ainda que estivesse em boa forma, não poderia nunca lembrar a lenda do homem que rolava em cacos de vidro e que brigava com gangs inteiras de motoqueiros e que fugiu durante onze meses do FBI, ainda mais sendo um ponto distante no palco, tudo isso, meu amigo, apenas tornava tudo pior. Ali estava um bom show, bom demais, se você quer saber - apesar da bateria cobrir a guitarra em I don't have home to come back - , mas, não estou certo se Jammie era mesmo humano, pra ser sincero. Quero dizer, ele até sorria, da beira do palco, e dava alguns saltos para mostrar que a idade e uma fase com drogas pesadas nem sempre arrasam com um homem, mas não sei, não sei.

Talvez você diga, bem, meu amigo, você não tem mais idade para a coisa e eu direi, talvez você tenha razão. Talvez. Porque boa parte das pessoas ali eram até mais velhas do que eu, se você quer saber a verdade. E isso não significa que a música do velho Jammie não pode tocar os mais novos, também não é isso. Tem esses moleques daqui do quarteirão, eles me conhecem como Joey's Uncle, por causa de Joey, e outro dia eles estavam em casa e eu disse a Annie, ei, o que será que essa molecada ouve e, bem, eles têm um gosto bastante eclético - eu sei, essa palavra é realmente horrível, mas - e isso tem um lado bom, claro, e um lado terrível, mas então coloquei, sem avisá-los e sem fazer nenhum comentário, Jesus I haven't got what you've said, man, em um volume médio e o óbvio aconteceu, eles logo estavam interessados em saber o que era aquilo - menos Joey, que tem uma certa resistência ao que eu lhe apresento, talvez por não querer que eu substitua o pai dele - e todos eles logo estavam batendo o pé junto ou tentando cantar o refrão, imitando a voz de pato rouco de Jammie. Óbvio. Música com batida repetitiva, melodia simples - o refrão é incrível - e uma letra genial, que permite desde uma leitura rasteira até profundas elucubrações críticas a respeito do que nos ensinam, desde pequenos, sobre ser pecador, enchendo nossa cabeça de terrores infindáveis. Voi lá, os garotos sabem das coisas.

Após o show fiquei pensando se não desejava que fosse diferente, talvez eu sentisse falta de algo. Como se eu quisesse que o show de Jammie se enquadrasse no velho esquema de juntar uma turma e fazer alguma coisa juntos: música, música! Sempre me pareceu muito mais excitante um show com os caras ali, saltitando na minha frente, e poder cumprimentar o cara que mandava ver na guitarra, logo depois do show, e de ser amigo de infância do baterista, e depois também fazer o meu próprio barulho e fazer alguma coisa realmente legal, que fala de nós mesmos, de nossos sonhos e dores, e que dura o tempo de se estar ali.

E então estamos presentes ao concerto de Mr. Jammie and his dogs e uau. Um barulho dos infernos e eu realmente queria não ter ido. Aquilo parecia uma boa propaganda de cerveja - impressão reforçada pelos cartazes imensos com os logos da Grift - , com um homem sem camisa gritando ao microfone, tentando, ao meu ver, parecer trinta anos mais novo. Não sei, não sei. De qualquer forma, já que eu tinha ido, resolvi me divertir ao menos um pouco: primeiro contei o número de pessoas com cabelo branco presentes; depois o número de meninas uniformizadas com camisetas estampadas com o rosto do velho roqueiro; então acabei indo para o fundo da pista, onde existia algum espaço e fiquei ali deitado, até que uns garotos sentaram ao meu lado e eles pareciam um pouco entediados e eu perguntei o que eles estavam fazendo ali e eles me disseram que o pai os havia trazido e eu disse que o pai deles parecia um cara legal e eles disseram que sim, mas que às vezes passava dos limites.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Apresentando Johnny.

Houve essa vez em que eu resolvi que deveria aprender a jogar bilhar. Depois da carta de Virginia, a vontade de mandar ver nos bares da cidade se tornou cada vez maior. E eu queria já começar antes mesmo dela voltar de San Antonio, para fazermos glória e dinheiros pelo mundo assim que ela pisasse em Jersey. Desci à casa do meu amigo Johnny, um cara acostumado a encaçapar as bolinhas. Ei, Johnny, como vai? Ele me sorriu e nos cumprimentamos à moda dos mal encarados da rua 18. Ele entrou na casa e eu o segui. Bebe um café? Claro. Sentaí. Bebemos café, eu sentado à mesa, Johnny acomodado sobre a mesa. Isso é uma das coisas que mais gosto nesse cara, algo que, de alguma forma, eu sempre tento levar comigo. Não me refiro ao fato específico dele ficar sentado no tampão de uma mesa com a xícara de café equilibrada no joelho; é como se eu considerasse aquele ato apenas como uma pequena mostra, um índice singelo de algo maior: a mania de Johnny de se dependurar em tudo que é lugar. Eu sei que isso pode soar imensamente pueril e deve mesmo ser. Não importa. Nada se compara a uma certa alegria que o corpo sente quando você salta um banco de praça ou se equilibra sobre um canteiro ou escala um muro para se instalar lá em cima. É quase como dançar - de um jeito mais informal, claro, mas, ainda assim, uma espécie de dança.

E então ficamos ali bebendo café. Eu não quis convidar Johnny logo para jogarmos e tampouco contei meus planos de me tornar um grande mestre do bilhar, porque achei que estava bom ficarmos ali, em uma espécie de nada-fazer. Isso é bom em Johnny, ele é um cara silencioso quase sempre. Às vezes esse comportamento causa problemas, é verdade. Como na época em que ele estava tendo um caso com Ellie. Eles haviam começado o negócio há pouco tempo, mas, parece, ela já estava gamada nele. E então estou eu sentado sobre o muro da minha casa, comendo ameixas e jogando os caroços no chão de terra do quintal, quando Ellie está passando com uma garota, uma loira nada mal que se chamava Joyce ou June ou alguma coisa assim e eu, uau, que loira, nada mal, nada mal e, ei, Ellie, Ellie! Ellie! E Ellie me viu e veio até mim e, como vai, querido? É aqui onde você mora? Que bacana. E, sim, quer entrar, tomar alguma coisa, Ellie? Quem é a sua amiga, etc. E Ellie, não posso agora, estou procurando a casa do Johnny, ele me disse uma vez que era por aqui, você sabe onde é? Mas claro, levo vocês duas lá, só um instante, vou lavar as mãos e botar uma camiseta e, claro, eu estava calculando tudo, 2+2=4, e tínhamos então um número par, uau. O próximo passo foi andarmos rua abaixo. Alcançamos a casa do Don Juan. Quando Johnny nos viu à porta, fez uma cara engraçada. Deixou a gente entrar. Ficamos ali pela sala, ele quieto, Ellie se agarrando no pescoço dele, ele balbuciando alguma coisa como "preciso sair, vocês vão ter que ir embora, será que não podem voltar mais tarde?" Eu não entendia nada, mas não podia me esforçar na tarefa de entender, estava tentando conversar com Janet - ou Joan, sei lá -, meus hormônios falando comigo, eles diziam, bem, você não tem mais dezesseis anos, mas, caramba, sempre pode se divertir. E eu queria ir à cozinha, mas Johnny disse, NÃO, quero dizer, não vá lá agora, o que você quer, eu pego pra você. Entendi menos ainda e puxei Johnny de lado e ele me sussurrou ao ouvido: droga, estou morando com uma garota há quatro meses, ela está dormindo no quarto agora, se vir Ellie ou qualquer outra mulher aqui vai me matar. Claro, se Johnny tivesse me dito antes eu não teria levado Ellie até lá, mas nããão, esse é Johnny, meus amigos.

Então estamos bebendo café e depois Johnny segue até a garagem, que fica no fundo da casa. Vou ao banheiro. Logo me junto a ele. Dou com Johnny fuçando uma velha 125. Que parada é essa, Johnny? Ah, troquei por aquele fogão mais dois butijões de gás. Funciona? Parece que sim, tem com um problema no carburador, mas acho que posso dar um jeito. Sentei no chão. Johnny mexia na motocicleta, as nuvens foram fechando, o céu escurecendo. Pensei que devia logo ir jogar bilhar, antes que a chuva despencasse. Mas fiquei com preguiça e, claro, quando você tem preguiça, muitas vezes o melhor é se deitar no chão e relaxar. Johnny perguntou se eu não podia dar a partida na moto, ele não podia porque uma bicicleta tinha passado em cima do pé esquerdo dele dois dias atrás. Dei a partida e o negócio funcionou. Johnny montou na moto e ficou dando voltas pelo quintal com um sorriso no rosto. Uma volta. Duas voltas. ZUM! Três voltas. Oito voltas. Depois parou, desceu da moto. Botou as mãos nos quadris e ficou olhando pra ela, cheio de contentamento. Meus olhos pulavam da moto para ele, dele para a moto. Então ele olhou para mim. E de volta para a moto. Depois para mim outra vez. Dei lhe um tapa no ombro, é isso aí, Johnny. Ele disse que ia tomar banho. Isso significava que iríamos de moto até a 25, ver se arranjávamos umas garotas ou alguma confusão. Ou as duas coisas. E foi isso que fizémos. Rasgamos pela Principal e logo estávamos no Martin's. Eu ainda tinha que jogar bilhar, mas foi nesse dia que vi Ginger a primeira vez e aí, bem, esqueci do bilhar, é que Ginger era - é - a dona das pernas mais deslumbrantes que já vi em toda a minha vida, mas sobre ela eu conto outro dia, porque logo depois estamos Johnny e eu voltando para casa e não demorou para ouvirmos uma sirene, oh, merda, é com a gente, você não tem os documentos da moto, não é? Exato, não tenho, e também não tenho carteira e então Johnny cortou pela 17, contornou como um louco o Teatro Municipal, e os tiras na nossa cola, oh, merda, merda, merda e subimos na calçada e atravessamos a praça Lawton Jr., o carro da polícia circundando a praça, babando como cachorros em busca de um osso - mas por que mesmo estão nos seguindo? -, Johnny acelerando como um louco, desviando das árvores, oh, merda, merda, e então ouvimos o primeiro tiro, o segundo, MEEERDA, eles estão ATIRANDO - e nem roubamos um banco ainda! - , e então Johnny cortou até a estátua do Grande Desbravador Cheio de Cocô de Pomba - o homem que fundou Jersey - e lá havia uma escadaria e VRUUUM, rumamos até o topo, o carro da polícia parando, a rua seguinte distante demais para eles contornarem, o Parque do Grande Desbravador um labirinto onde seria impossível nos encontrarem, inúmeras saídas, o vento da noite em nossos rostos, seres noturnos zanzando pelo parque, e UAU, zarpávamos rumo à vitória, saímos do parque e. Demos de cara com outras duas viaturas.

E no xadrez conheci um pederasta que queria me comer de todo jeito, a minha sorte é que não se tratava de um cara violento, pelo contrário. Conversava numa boa. Johnny sim teve problemas sérios, pelo que me contou depois; na cela onde o jogaram - que estava lotada; ele não tinha curso universitário como eu - queriam suas roupas. Um negro com uma bandana na cabeça e uma corrente no pescoço queria as calças. Um cabeludo com uma cicatriz no rosto lhe pediu as botas. Um barbudo corcunda queria a camiseta. Um baixinho de bigode que tinha tuberculose mandou que lhe entregasse as cuecas. Então Johnny se jogou sobre o negro com a bandana e travou uma briga com o cara. Tomou um cacete, é óbvio. Mas os caras lhe admiraram pela coragem - acho que não conheciam a palavra desespero, para eles era MEDO ou CORAGEM, sem meio termos, e deixaram que o sortudo entregasse apenas as botas. Do meu lado passei a noite jogando pôquer com o tal pederasta. Ele não quis me dizer porque havia sido preso. E deu risada quando eu contei a história da moto. Ele botou a mão no meu joelho e eu deixei. Ele botou a mão na minha coxa. Ok. Depois meteu a mão entre as minhas pernas e aí achei que era demais. Eu simplesmente não ia conseguir. Ele até disse que eu podia fechar os olhos e imaginar uma puta me chupando. Mas disse que depois iria querer compensação. E deu risada. Me levantei. Ô, meu chapa. Vamos parar por aqui. Tentei fazer pose de durão, pra meter medo no cara. Mas ele sabia, eu ainda morava com a minha mãe. Então sentei outra vez na beira da minha cama. Ele, por fim, sossegou um pouco. Sacou um baralho de baixo do colchão e propôs o jogo. Era um fenômeno. Ganhou todas e depois me disse que aos vinte anos ganhava a vida com sete mesas de pôquer na esquina da 10 com a Principal. Ele jogava simultaneamente nessas mesas, contra sete adversários, ao mesmo tempo, e rapelava todos eles. Era o maior. Até que um tal de Mr. Q., jogador profissional formado em Harvard, apareceu por ali e o derrotou. Sua moral foi lá embaixo, não conseguia mais ganhar nem de um garoto de cinco anos. Morou nas ruas uns dois anos, pedindo esmolas. É duro, meu amigo, quando você simplesmente não acredita em mais nada - e não estou falando de Deus, estou falando de não acreditar mais que seja possível, só isso. Mas então aos poucos fui me reestabelecendo e depois me mandei para um squat em Londres - como conseguiu a grana para ir para lá ele não me contou - onde morei por cerca de oito anos. Era um lugar formidável, as pessoas se organizavam e cuidavam de suas vidas, mas ao mesmo tempo, uns estavam sempre perto do outros. Trabalhávamos para nós mesmos, no que isso era possível, e fazíamos festas e mais festas e o lugar atraía todo tipo de gente, uma diversidade incrível. Mas daí o Estado precisava do quarteirão para fazer um Museu, porque a área toda estava sendo revitalizada. E veio a polícia e, claro, resistimos, mas daí as coisas foram ficando cada vez mais difíceis. Porrada, meu amigo. Vê essa marca no meu braço aqui? Bala de borracha que é aquela bala que, dizem, não machuca muito, a não ser que acerte no seu olho, mas as chances são poucas, então não há com que se preocupar, hah, e então fui deportado, porque era ilegal. E então eu disse, uau, cara, que história, hein!? E ele disse, ah, não se empolgue, não se empolgue; mas, bem... Se você gostou mesmo da história, acho que podíamos pensar naquela compensação, não podíamos? Hahaha.

Nisso um guarda parou à porta da cela. Ao lado dele estavam Bill e Johnny. Johnny vestia umas calças de couro, uma camisa branca, um sobretudo, um chapéu, um par de botas novas, um par de óculos escuros, luvas de couro com os dedos cortados e fumava um cachimbo. Vambora, garoto - Bill havia pago a fiança. Me levantei e me despedi do pederasta, desejei-lhe boa sorte. Para você também, ele me respondeu. Se puder, venha me visitar dia desses. Talvez, respondi. E obrigado por me ensinar os truques todos do pôquer. Não há de quê. Apertamos as mãos. Na rua Johnny me contou onde havia arrumado as roupas: a gente apostou quem estava com mais piolhos e eu ganhei, você não imagina como, dividi os meus ao meio e os estiquei, como naquele conto do Bob Finger, hahaha. E Bill me diz então: Mas me diga, que namorado você arrumou no xadrez, hein, meu camarada? Hahaha.

E no final nem choveu e nem joguei bilhar e pederasta é uma palavra péssima. Mas acabei desistindo do bilhar, ao menos como meio de vida, deixarei o tapete verde apenas para diversão. O meu negócio agora é o pôquer, meu chapa. Se cuidem, trapaceiros de Jersey, o campeão do mundo está chegando, ele começa nessa cidade minúscula e daqui o céu é o limite.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Apresentando Bill.

Devia ser o quê? Umas três da manhã? E estava tudo bem, Bill se encontrava sobre os dois pés, abaixado, de cócoras. Eu encostava, sentado, na parede de azulejo azul da cozinha do apartamento de Julie. As outras pessoas dormiam, algumas na sala, algumas no quarto. Acendi um cigarro. Bill se movia, trocando o apoio de um pé para o outro, freneticamente, falando pelos cotovelos, como de costume. Horas antes, havia andado pelo apartamento, falado, apontado as coisas, questionado as pessoas, feito considerações, "noite inesquecível estamos tendo, não?", puxado as meninas para dançar. Eu mesmo acabei também dando pulos de um lado para o outro quando colocaram Hollie Barnie para tocar, mesmo que, em algum momento, algo distante me fizesse pensar de que talvez aquilo não fosse apropriado. Enfim.

Não sei se alguma vez já contei sobre Bill. Ele vem de uma família grande, nove irmãos ao todo. Fomos apresentados por alguns amigos em comum, pessoalzinho metido a escritor, gente como eu e também como ele. Mas Bill nunca se prestou a sentar em frente a uma máquina de escrever. Sempre perguntava sobre nossos trabalhos, lia nossas tentativas, falava de grandes histórias que foram e seriam contadas. Disse que já tinha muitas coisas para escrever - isso aos vinte e tantos anos! - porque tinha atravessado o país duas vezes. Mas nunca botou as mãos sobre uma folha em branco para contar essas histórias. Quando o conheci, Bill chamava-se Memphis. Sim, não sabíamos o verdadeiro nome dele. Memphis era um espertalhão viciado em 21 - melhor, um viciado no jogo que vivia espertamente das apostas do 21. Havia fugido de L.A. porque tinha sido jurado de morte e contava essa história obscura de um pessoal da máfia que queria apagá-lo, fugas pelas estradas, tiroteios, mulheres perigosas - ele tinha uma história incrível sobre Mary Burton, que ele dizia ser uma espécie de viúva negra, milionária que se casava todos os anos, porque seus maridos morriam invariavelmente após alguns meses de casamento das causas mais absurdas - um deles morreu engasgado com uma borracha escolar! - e o pior é que ela sempre arranjava um marido rico, mesmo que todos soubessem quão fatal era a companhia dela. Nessa época, descíamos Bill e eu até a Praça 22, dependurados nos trens, para não pagarmos passagem, e passávamos horas jogando pedras no Grande Lago. Queríamos saber se lá existia mesmo um monstro e uma vez Bill jurou ter visto uma cauda verde e escamosa que depressa rompeu a linha da superfície, e, claro, não acreditei. Vez ou outra flertávamos com as garotas que iam tomar sol por ali e numa ocasião eu contei a uma delas sobre o monstro e ela riu de mim, é óbvio, porque se tratava de uma história realmente absurda, mas ela atentamente me ouviu falar sobre esses seres pré-históricos que ainda viviam sob as águas e o beijo dela não era lá essas coisas, acho que os lábios dela eram finos deveras, mas ela se entregava com uma doçura que comovia. De qualquer forma, não a vi mais, porque ela se mudaria para outro estado com a família.

Depois fiquei sabendo que Memphis não se chamava Memphis e em um documento - que era falso, descobri depois - seu nome constava como Brighton Ashton. Certo, Brighton, porque Memphis? Porque eu tinha vergonha do meu nome e, bem, na realidade passei pouco tempo em L.A. - mas lhe garanto, boa parte daquelas histórias são verdadeiras. Vim da Califórnia e essa cicatriz na minha perna foi resultado de uma dentada de um tubarão perdido no Oceano Pacífico que quase acabou comigo, num tempo em que eu pegava ondas com minha longboard - não fosse minha sorte de sempre, meu camarada, eu não estaria aqui lhe contando essa. Nessa época estávamos numas de jogar futebol, também Johnny e Brandon e Rizzo. E lá vamos nós, eu realmente não tinha um físico apropriado para esse jogo, mas minhas pernas eram realmente boas e Bill me dizia, bem, vamos fazer assim, a defesa segura a bronca e eu lhe mando bolas de profundidade e você, meu camarada, veja se bote essas pernas pra funcionar, porque, afinal, sua vida é que estará em jogo, haha. E eu realmente corria e nunca vi nenhum lançador como Bill. Nem mesmo nas ligas profissionais, nem mesmo o grande Hornet Star, com suas mãos mágicas, conseguia fazer lançamentos tão bons. É sério. E vi Bill se recusar a jogar como profissional diversas vezes. Mas Bill, são contratos milionários. Apenas dinheiro, meu camarada, e sim, dinheiro é bom, claro que é, mas eu gosto demais desse jogo, acho que não aguentaria me obrigar aos treinos, aos jogos consecutivos e ganhar, ganhar e ganhar. E a bola fazia aquelas parábolas incríveis, curvas, jardas e jardas sobrevoadas e eu quase perdia a concentração porque me punha extasiado com aquelas maravilhas cortando o céu azul e lá ia eu, um zero à esquerda nos jogos universitários, ombros estreitos, compleição frágil, transformado por Bill num marcador fenomenal de touchdowns, quase um gênio possante da bola. E então Bill berrava como um louco, AAAHHH, É ISSO AÍ, MEU CAMARADA!

Também íamos ao rio detrás da casa do velho Moe, e Bill apostava corridas com Johnny, péssimos nadadores, mas ótimos comediantes, com suas braçadas escandalosas. Apostavam garrafas de uísque, ou então quem iria lavar a louça naquela semana - eles dividiram um apartamento durante uns três anos, até Johnny se casar. Eu gostava muito de ficar boiando e sentir o rio me carregando - ainda faço isso, o rio ainda está lá, mas hoje não tenho tido o mesmo gosto, acho que prefiro dar um mergulho e depois me aventurar ali pelo mato que segue rio abaixo. Bill às vezes me forçava a levar o violão e fazíamos uma fogueira e Johnny trazia batatas - ele era viciado em batatas - e ficávamos por lá e às vezes Moe aparecia e consigo Stella e Lucy, suas filhas, e era interessante como Moe não se importava se flertávamos com elas. Quero dizer, nunca aconteceu muita coisa, se não me engano Johnny uma vez ou outra se enroscou com Stella em algum canto por ali, mas nada demais. Bill era o que mais fazia piadas, claro, mas não passavam de bravatas, porque ele estava apaixonadíssimo por Ruth, uma negra de um metro e oitenta que era cabeleireira, e eu não estava tão interessado assim, apenas conversava normalmente com elas, porque as achava sem graça - se bem que houve certa tarde em que, inexplicavelmente, Lucy estava, hm, mais atraente do que de que costume, eu não sei se eu me encontrava um tanto carente ou sei lá o quê, mas o que eu mais tinha vontade na minha vida era de me deitar sobre aquelas pernas que, naquela tarde, me pareciam mais bem torneadas do que de costume e, claro, ela percebeu que eu estava diferente e ela também ficou diferente, e uma ponta de esperança surgiu para ambos, mas, na vez seguinte que nos vimos não foi do mesmo jeito e bem, é a vida.

Mas depois Johnny encontrou outro documento de Bill e lá constava: Robert Manley. E passamos então a chamar Brighton, ex-Memphis, de Bill e ele nos confessou que a cicatriz da perna havia sido adquirida, na verdade, em uma briga de bar, mas que ele realmente havia pêgo onda na Califórnia por um tempo, e então ele nos disse que vinha de uma família de nove irmãos e que seu pai era um cantor de blues, perdido em algum lugar no sudeste, tentando a vida como músico e era a sina dele ser músico também e ele insistiu que eu deveria ensiná-lo a tocar violão e então eu lhe disse que arrumasse um e dois dias depois ele me apareceu com uma linda semi acústica um tanto surrada e um pequeno amplificador valvulado e eu não faço idéia de onde ele arranjou dinheiro para aquilo, talvez executando alguma trapaça ou fazendo algum trabalho escuso e, agora, nesse momento, ele está entrando porta adentro e se ajeitando no sofá velho da sala aqui de casa e, sim, vamos ver se não fazemos algumas canções para nos divertir e até mesmo para fazer algum dinheiro, afinal, nessa terra quase tudo ainda é movido pela força da grana, sim, meu amigo, quase tudo, mas não tudo.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Resposta de Pedro Miguel a Virginia Marton

Babe,

Sim, sim, o México, eu sei, os outros talvez digam: os arruaceiros novamente, outra vez eles, oh, outra vez, por quê, por quê? E então talvez eu me importe, talvez não, bem, sim, eu me importo um pouco, tenho de admitir, mas, ao mesmo tempo, acho que seria incrível rasgar o deserto e depois de enfrentar essa fornalha, alcançar aquela floresta estranha, você sabe, você já ouviu essa conversa, é terrível, a única maneira de passar por lá é sendo a própria floresta, sua respiração e a nuvem de insetos devem ser uma única coisa, insetos mortos grudados no seu suor, nas suas roupas empapadas, na sua pele, nos seus cabelos, e não há como lutar, é preciso se deixar arrastar, é preciso, eu sei, eu sei, cabeça demais essa conversa, mas.

Preciso lhe dizer, encontrei Camille semana passada, e zum, quando percebi, estávamos em um trem, destino: Nashville, nós dois e mais dezoito pessoas, algumas chapadas, outras não, algumas dançando, outras lendo, algumas dormindo, outras apenas curtindo a estrada, mas todas numa boa e eu sei, essa conversa talvez soe clichê deveras, mas, você sabe, Virginia, Camille passou por uma fase difícil, parecida com aquela que atravessei ano passado, por isso temos nos entendido tanto, eu acho, como se eu pudesse ser um pouco Camille e ela um pouco Pedro, uma espécie de Pedro-Camille, ao menos no meu mundo de fantasia, claro, claro, mas, enfim, você deve se lembrar como fiquei largado no ano passado, mal me levantando para comer, pensando apenas no fim, no fim, apenas eu, eu, eu mesmo, você sabe, babe, mas, agora, agora, agora Camille está em outra e é isso aí. Por isso esse meu respeito a uma turma toda indo para um lugar qualquer, todos numa boa, pessoas se jogando num lago, gente atravessando tardes mandando ver canções de tudo que é tipo, alguns outros jogando baralho no fundo do quintal, todo mundo dormindo abraçado no chão - todo mundo não, só aqueles que quiseram; eu mesmo, no segundo dia, precisei me esticar só, porque é preciso estar só também, babe, você está me entendendo, e então todos nós estávamos nos entendendo tão bem, nada de amarras, e estou louco para jogar aquele bilhar de sempre contigo, mas, é óbvio, não me meterei à besta, nada de apostas, eu me recordo do seu olho certeiro, bola oito na caçapa do meio, plaft, pum, além do mais, você sabe, o que vale é o prazer do jogo, veja se não vá corromper a delícia de ver as bolinhas rolando no gramado por causa de uns trocados - se bem que uma grana sempre é bem vinda, é, é sim, eu sei.

Bill estava lá também, acho que algumas de nossas diferenças se diluíram nesta viagem e jogamos futebol e fizemos dupla de ataque e depois fomos ver as mulheres no centro da cidade e depois passamos a noite bebendo cerveja, sentados em uma ponte sobre um rio incrível que passa por lá e como eu gosto desse cara, Virginia. Gosto muito de Bill, o sacana. Depois Johnny chegou e, claro, se jogou da ponte, você conhece Johnny, oh, Johnny, meu pequeno amigo, louco até os ossos, eu diria, mas não direi, porque sinto tanto que às vezes nossos olhos podem ser apenas mais alguns olhos tentando dizer a Johnny o que ele não deve fazer e isso não me parece algo muito legal, afinal, o salto em direção à água foi algo realmente digno de nota, depois do susto Bill disse - disse não, gritou - EI, JOHNNY, ESSE MERECEU UM 9.7 e eu tive que me render a eles e dizer JOHNNY, SEU PILANTRA, 9.8, UAU. E também Lucie estava lá e eu muitas vezes não entendo porque não casamos ainda e eu nunca vou saber, talvez apenas um dia case com ela, talvez não, esse fluxo de vida tem sido tão doce, Virginia, você deve estar me entendendo, o problema todo é que as coisas simplesmente não aconteceram, talvez o problema é que eu não tenha me apaixonado enlouquecidamente por ela - e você deve ter consciência de que eu tenho pensado muito a respeito do que é se apaixonar enlouquecidamente, principalmente depois de Ginger, oh, Ginger, pequena Ginger -, mas, de qualquer forma, você sabe, embora nos gostemos, dos nossos encontros quase sempre surgem algumas faíscas, atritos, mas as coisas se movem, não? E ela estava realmente muito linda e também Camille, mas Camille é uma outra conversa, ela às vezes consegue ser mais confusa do que eu, hah. Mas é uma garota e tanto, acho incrível como ela consegue juntar as pessoas, nesse sentido ela me lembra um pouco você, espero que a comparação não te incomode, eu sei, eu sei, e acho também que ela consegue sonhar, sabe, Virginia? So-nhar.

E fizemos a festa e a cada meia hora aparecia algum morador da região e vinham sempre serenos, porque a cidade é de uma serenidade impressionante, e eles também são bastante sorridentes, e traziam presentes, bebidas, e ficavam por ali, e traziam coisas para vender, e nos venderam garrafões de vinho, e nos venderam artesanato aos montes, e nos venderam pães, bolos e nos levaram para os lugares onde as coisas aconteciam e gastamos nossos dinheiros nesses lugares e tentei ser carinhoso com Judy, uma moça duns vinte anos lá da região, e essa minha tentativa de lhe dar um abraço fez com que ela até o final da viagem me tratasse com uma frieza discreta e eu lhe juro, Virginia, em momento algum passou pela minha cabeça que ela, eu - eu só queria lhe dar um abraço. Enfim. Mas houve muita alegria e eles foram todos incríveis conosco e são pessoas maravilhosas e o lugar é lindo, Virginia. E, Virginia, às vezes me arrependo de não ter ido para aí, fico imaginando como vocês têm passado as noites, fico pensando que eu poderia estar com vocês e com esses caras desse lugar incrível, ouvir as histórias deles, dançarmos todos ao redor de uma jukebox cheia de músicas ruins, e que poderíamos passar as noites de olho nesse céu estrelado, porque o céu daí certamente é estrelado, e eu dormiria o dia todo, por causa do calor e eu sei que nós enlouqueceríamos e iríamos para o México de um jeito ou de outro, e agorinha mesmo estaríamos vendo aquelas pessoas que nem imaginamos como são, mas que um dia veremos e que um dia passarão por nós, todos ligados a um outro tempo, tão difícil para nós entendermos, e, claro, em algum momento ficaríamos de mau humor e talvez você não me suportasse por uns dias ou eu mesmo iria querer voltar para minha casa aconchegante, ou então eu reclamaria do desconforto do banco do carro, mas nós também nos divertiríamos a valer, Virginia, atirando em latas, com uma Colt 45 que pegaríamos emprestada de algum cowboy - eles estão por toda parte -, ou lendo em voz alta os poemas de Whitman ou talvez fazendo uma balbúrdia em algum bar com um bandolim e uma gaita, noite adentro, dançando e cantando, ou conversando com os velhos que nos contariam coisas dos outros tempos ou então, uau!

E, claro, grande Lousie, seu pequeno peixe, eu posso tentar imaginar, eu sei que minhas conversas muitas vezes são uma espécie de delírio, não me importo, mas, sim, eu sei, às vezes eu sei, pontes, pontes, pontes. Sem sentimentalismo algum, conexão apenas, eu tenho tanto pensado nisso, esse mundo é terrível às vezes, mas há tanto, tanto e às vezes nos esquecemos um pouco dessa necessidade de completitude que aprendemos desde criancinhas e surge então a chance dos sobrevôos e quando vemos estamos lá e então lá e depois lá e vamos saltando longas distâncias e e e.

É por aí. Um beijo estalado.

Pedro Miguel

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Carta de Virginia Marton a Pedro Miguel

Querido.

São quase seis horas aqui em San Antonio, mas o calor nos faz pensar que ainda é meio dia. Louise, como de costume, acordou cedo. Mas não deu caminhada alguma, por aqui não vale à pena gastar energia andando à toa por aí, a não ser à noite. Ela ajudou Mrs. Marton a lavar roupa, e depois dependuraram os lençóis nos varais, você se recorda daquela imagem da sua infância, que também é da minha infância, longos varais e roupas secando ao sol, um longo gramado? Me fez lembrar de ti e tenho tanto pensado no que faremos quando nos reencontrarmos, Pedro. Bem. Depois almoçamos e então fiz massagem nas costas dela, para aliviar a tensão dos braços, ela não está acostumada a trabalho duro, não é como nossos avós. Mas ela, ao menos, tem se dado melhor com o calor do que eu. Passo os dias imprestável, largada sobre a rede, lendo e relendo Song of myself, aquela edição que você me emprestou e que precisarei repor, porque está toda amarelada, com as folhas todas se soltando, de tanto que me aventurei por ela, ela agora minha, não há mais volta, querido, ela cheira a eu mesma, mas não se preocupe, lhe comprarei outra assim que nos revermos.

Não é que eu imaginasse que fosse ser diferente. Não é também que eu achasse que fosse ser entediante. Não tinha expectativas, para ser sincera. Já Louise... Palavras dela: "Não sei como serão as coisas por lá, meu amor, tenho medo de que tudo se acabe, que eu não consiga ser alguém suportável, que todos me odeiem, porque eu mesma - eu - talvez acabe virando um bicho e das duas, uma, ou me trancarei em mim mesma, a dormir em algum canto os dias todos ou então atacarei qualquer um que cheire um pouco diferente, que se aproxime da minha comida ou das minhas crias." E eu disse a ela que não se preocupasse, quando as coisas ficassem estranhas, nós poderíamos jogar damas - porque eu jogaria damas com ela sempre, sempre - e relaxar ouvindo Chet. No fim, tem sido um pouco assim mesmo, temos passado as tardes jogando damas, quando não nos metemos a ler - eu, o meu Whitman, e ela as dezenas e dezenas de livros que trouxe (me fez carregar uma mala extra cheia de edições de escritores irlandeses, é uma obssessiva, a mulher). Mas não é só isso; Louise tem tido dias repletos de afazeres, ela tem se entendido bem com Mrs. Marton e com Anne, fazem compras juntas, lavam a louça, cozinham; depois ela vem sempre com um risinho engraçado pra cima de mim, como se dissesse que aquilo não é tudo, que aquilo é apenas algo que ela está experimentando. Não sei, de qualquer forma, tem sido bom para nós duas. Muito bom, Pedro, como há muito eu esperava que fosse.

Mr. Marton tem ficado pra cima e pra baixo com meu irmão, Josh. Isso é bom, você sabe. Ele nem tem se lembrado das dores nas costas, no peito, nas pernas. Os dois vão pra lá e pra cá, bebem uma cerveja, assistem o futebol na TV, encontram algo para arrumar na casa. A bebê está muito bem, já engatinhando pelos cantos, louca para sair pela porta e se ir deserto adentro. E o deserto, querido. Lousie e eu temos flertado com a estrada, loucas para ir adentro, até o México. Mas temos medo de que isso seja apenas um apelo, hm, rebelde. Você sabe. Acho que se em algum momento houver um chamado, iremos. Mas, por enquanto, é tudo. Quero dizer, não é tudo. Não te contei ainda que tenho passado as noites jogando bilhar, você não acredita, juntei uma grana legal, demolindo um por um dos campeões da região. Eles não conseguem entender. Uma mulher! Numa noite dessas, Lousie e eu entramos num bar e começamos a beber tequila. Já estávamos um tanto bêbadas, quando Louise quis jogar, há muito eu não jogava, mas não consigo resistir, você sabe. E compramos umas fichas. Quando vi, eu estava apostando grana - saí de lá trintas dólares mais rica! Depois disso, comecei a ir quase todos os dias de bar em bar, eles já me conhecem, lá vem ela, the damned woman. Rá. Se prepare, porque quando eu voltar, talvez compre um carro e aí sim valerá à pena ir ao México.

Com amor,

Virginia.
PS: Lousie não escreveu uma carta para você, ela escreveu um parágrafo e me pediu que o copiasse aqui e disse que te ama.
"Neste lugar as mulheres trabalham como bestas e não há novidade alguma nisso, a não ser o fato de que, aqui, tenho agarrado a vida com as mãos; não sou como elas, elas não são como eu, mas tenho trocado olhares como eu nunca pude trocar com qualquer uma dessas mulherzinhas aí: tenho lavado roupa e costurado as roupas dos homens e isso tem sido muito mais do que uma atividade diária, uma outra coisa. Não é que eu finalmente saiba que não há o que temer, não posso dizer que encontrei-me e também não posso dizer que agora saio de mim para me encontrar com todos os outros, não é isso, mas, parece, algo em mim fez fortaleza, e não são muros, são pontes. Já vistes uma fortaleza de pontes, meu amor? Uma delas cruza essa América e termina aí, em Jersey."