sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Apresentando July Moon


Vamos dizer que July Moon tinha uma risada engraçada, um tanto abobada, os pés um tanto longos; as pessoas davam de ombros para o que ela dizia, muitas vezes - isso quando notavam que ela tinha se pronunciado. Do lado do corpo pendiam seus braços finos que se moviam como duas enguias melancólicas. Não era feia, do jeito dela até era bonita, mas era desengonçada, sem sal; tinha pernas torneadas, mas muito brancas, que iam dos tornozelos bonitos até o quadril fino. Os ombros eram largos para o tórax mirrado. Passávamos algumas noites ouvindo vinis que ela ganhara do irmão, antes que July fosse estudar em outra cidade; ela tinha uma porção de vestidos e colares e maquilagem, mas só vestia jeans e camisetas e tênis surrados; então, em certas ocasiões, minha irmãzinha, quando estávamos a sós, se metia dentro daquelas roupas de mulherzinha, e corríamos pela enorme casa dos seus pais e vez ou outra até eu mesmo usava aquelas roupas e ela me maquiava e escorregávamos pelo corrimão a margear a escada que ligava o andar de cima à sala de estar e representávamos personagens e, claro, certa vez passei um certo apuro, July me passou um tipo de batom, novidade na época, e não sabíamos que o maldito negócio tinha duração de 24 horas, um incrível invento do homem moderno para a mulher moderna e então eu era um homem moderno com os lábios besuntados de um insistente vermelho e tive que chegar em casa – naquele período ainda vivia com meus pais – com a boca realmente fechada e me mover sorrateiramente até meu quarto; mas logo July tinha seus acessos de asma e nossas corridas precisavam parar e ficávamos em silêncio, mas aquilo não era necessariamente uma parada, apenas uma mudança de marcha, porque continuávamos como o velho navio de Pickett rasgando o mar, o mar abraçando o navio dele, mesmo que, então, num movimento mais sutil, lento, quase estagnasse, como se nos déssemos conta de que o sol num momento está ali e, então, voi lá, chega ao outro lado, ou uma flor num dia se encontra ainda como botão para aparecer aberta no dia seguinte, etc, e às vezes fazíamos sexo, sem tanta voracidade, mais como um certo hábito, porém não por obrigação, nada disso, não, apenas porque estarmos juntos era quase o mesmo que se tocar, sozinho, à noite, tranqüilamente, no silêncio do seu quarto e além de atravessarmos algumas noites daquela maneira, também nos encontrávamos na praça 3, em frente ao Maxi´s; eu ia ter com ela, depois conversar sobre os carros que eu nunca tive com outros sujeitos que também não os tinham.

Era uma cinéfila incomparável, me apresentou Enrique Días, começou por aquele filme em que os caras todos não tinham emprego e ficavam de boa, no bilhar, mas, lógico, algo começava a dar errado rapidamente, a marcha concreta do Grande Fantasma ia empurrá-los todos em direção ao abismo, coisa e tal, e o filme era realmente incrível, desde então adoro Enrique Días - algo que nos acontece ao redor todos os dias, como nunca percebemos? - saí de lá me perguntando e quis fazer cinema, porque Enrique Días era um gênio amado por todos os intelectuais e porque July o adorava e porque ela vivia através daquilo, mas, bem, como eu poderia me atrever? Nem mesmo ela se atrevia, acabou indo estudar coisas de escritório, como o pai dela havia planejado, e aquilo já era bastante, afinal, nem todas as meninas iam estudar, mas não era tudo, o pai dela também lhe dizia que arranjasse um homem sério para casar e, bem, o que era seriedade, então? Não que eu me ressinta, mas July acabou por casar com Tony McFries, um bestalhão da universidade, não um jogador de futebol, nem um garanhão, mas o filho de Henry McFries, um dos parceiros do pai de July no golfe, pensando bem, até um cara bacana, cheguei a beber umas cervejas com ele vez ou outra, mas, sinceramente, nunca achei mesmo que o negócio dele fosse July, enfim, sei que Johnny fora tremendamente apaixonado por ela durante muito tempo, tive que ajudá-lo quando ela se foi, meu camarada sentiu muito mais do que eu, embora eu fosse mais próximo dela, mas, claro, éramos apenas bons amigos - July & eu -, jogávamos damas por horas e ali estava algo que realmente nunca mais consegui fazer, nunca fui afeito a esse maldito jogo, mas, como entender, as pedras deslizavam, o tempo parecia estofado e tinha um cheiro bom quando eu jogava damas com July e ela cortou os cabelos certa vez, do comprimento dos meus e compramos armações idênticas paras os nossos óculos, quem vai entender?

O fato é que McFries voava a trabalho daqui para Europa constantemente e trazia colares e brilhantes para minha irmãzinha – chegou a trazer vinho do Porto para mim, certa vez -, e nos levava para assistir a coisas (ruins) na Broadway e conhecia alguns diretores por lá e insistiu que eu entregasse alguns dos meus escritos e o fiz, mas os caras devem ter achado todo o meu esforço artístico um engodo, infelizmente, pois, do contrário, talvez eu tivesse algum dinheiro no bolso agora, mas, que importa? Fato é que, no primeiro ano de casamento, eu via July muito mais do que McFries e o próprio Johnny teve oportunidade de dar um pouco de vazão à sua paixão por ela, mas eis que certo dia Johnny subiu correndo pelas escadas, merda, merda, o pai dela, O PAI DELA! E, sim, lá estava Sr. Moon chegando alguns segundos depois de meu camarada Beefheart, os olhos esbugalhados, achando de muito mau gosto que eu e July estivéssemos com roupas muito parecidas: a única diferença uma gravata que ela havia gostado muito, adornando o colarinho de sua camisa e, sim, tivemos que sair de lá imediatamente, July obrigada a ir para França, onde seu marido a aguardava; nos falamos por cartas desde então, o próprio Tony me enviou uma pedindo desculpas, mas Sr. McFries não tinha gostado de saber - informado por Sr. Moon - de que sua nora estivesse recebendo a visita de dois caras na ausência do marido, principalmente de dois pés-rapados como eu e Johnny Beefheart, o larápio escalador de árvores & muros. Ele pensava que isso talvez interferisse nos negócios, na época não se sabia que os negócios extrapolavam coisas como família & etc.

July quase nunca tocou no assunto de ter que sair às pressas e, quero crer, contra própria vontade, da casa onde fora criada, para longe dos amigos, para morar em uma terra distante, junto a um homem que nem ao menos despertava algum interesse nela, muito menos algum desejo. Era o jeito dela, acho, não dizer. Vivo me lembrando de uma história que Johnny contou a nós, numa dessas noites em que ficávamos os três fumando e bebendo, largados na varanda da enorme casa do Sr. Moon, algum episódio da infância: Johnny disse que era um garoto quieto e criou fama de valentão no pedaço onde morava, porque certa vez passava com mais dois colegas numa parte do bairro onde não tinham amigos e foram cercados por um bando de garotos e, lógico, o negócio era pernas pra que te quero, os dois camaradas de Johnny se mandaram, mas ele disse que não conseguiu. Simplesmente não se mexeu. Ficou ali, com cara de tacho e, bem, o bando o cercou e passaram rapidamente de intimidações para empurrões e tapas e então socos e pontapés e Johnny disse que não conseguia correr e nem se defender, ficou apenas ali, recebendo os golpes, quase impassível, e os caras aos poucos se cansaram, porque Johnny não revidava e também não chorava, nem implorava para que parassem, ele disse que então, ao contar a história, lhe vinha uma imagem estranha à mente, ele pensou que parecia um zumbi, mas então lhe deixaram ali, meio caído e se mandaram; os dois colegas, que viram tudo de longe, voltaram e lhe deram uma mão para andar até em casa e os ferimentos não passaram, por sorte, de um olho inchado, um dente perdido, um cotovelo esfolado e alguns arranhões e esses mesmos colegas espalharam pela rua que Johnny não se rendeu e nem fugiu, que era uma maldito louco valente e que todos deviam lhe respeitar, porque ele enfrentaria o exército germânico sozinho se fosse o caso, mas Johnny disse a nós que não era coragem, não era nada, ele simplesmente não tinha conseguido se mexer.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Estrada abaixo I


Vamos dizer que as coisas ficaram um pouco estranhas, então, silenciosas e escuras, mas não silenciosas e escuras como quando chega o fim de uma festa, porque nesse caso você vê as pessoas que restaram nos cantos, elas conversam baixo, um ou outro dorme no sofá da sala, alguém arranha alguma bela e triste canção na varanda, sempre há algum corajoso dançando sozinho na cozinha, você sente um vento gelado e eletrizante chegar da rua, as luzes se encontram quase todas apagadas, alguns já aguardam o nascer do sol, quase todo mundo já se foi, permanecem aqueles que ou não tem o que fazer, ou não arrumaram carona, ou que ainda estão com suas baterias cheias, prontos para irem dali até o paraíso, ou ao inferno, ou a qualquer outro lugar onde ainda possam se divertir, dar pequenos saltos, ou mesmo apenas irem para suas casas, ainda excitados por uma grande noite – e tantas outras virão, pensam – e talvez possamos reconhecer entre essa gente alguns que pensam em levar a festa para fora dela mesma, como se dissessem, vamos abusar da vida, meus camaradas, ou então aqueles que festejam de outras maneiras e é justamente naquele término de noite é que tiram algum prazer entre uma baforada longa de charuto, alguém dormindo em seus colos, a sensação de se estar rodeado de amigos e, bem, claro, se eu continuar serei cada vez mais como um cão perseguindo o próprio rabo, mas tudo isso para dizer, não, nada silencioso & escuro como isso, os dias estavam mais para outra coisa muito menos produtiva.

Sei que passei cerca de oito meses morando com Johnny, mais exatamente em um quarto no fundo da casa que ele havia alugado e, apesar de me felicitar sempre que o maldito aparecia dependurado na janela do meu quarto, não podia dizer que estava tudo bem. Quero dizer, sei que ele nunca pensaria em me pedir para sair, porque eu realmente não causava problemas, isto é, nunca tive coragem de me tornar um junkie, tampouco consegui me tornar um marginal a sério, no máximo trazia alguma comida do mercado e, por não ter dinheiro, precisava, vamos dizer, aproveitar um pouco mais do que as promoções. Mas nada além disso: nem dei festas incríveis, no geral acabava só aparecendo nas festas dos outros, sendo assim, não é que eu fosse um inquilino que causasse problemas, porém, algo me incomodava, talvez um maldito sentimento idiota de reciprocidade, como se eu devesse algo para o meu camarada pelo motivo de não pagar um puto para estar ali naquele quarto dos fundos. Mas, e daí? Eu já tinha morado trinta anos na casa dos meus pais, vivido ao todo uns quatro anos (entre separações e retornos) às custas de Elsie, qual era o problema de morar com meu velho camarada de bilhar, Johnny Beefheart?

Sei que eram duas da tarde, eu tinha ido às seis para cama e não por ter tido uma noite “agitada”, mas sim porque não conseguira dormir, em minhas mãos havia caído um volume incrível do diário de Pickett, o marinheiro, e tive que devorá-lo de uma só vez, trezentas e dezessete páginas. Nunca pude imaginar que o mar pudesse me atrair tanto assim, talvez eu devesse ir parar no litoral, no fim das contas, pois eu realmente podia me sentir como se nascido nas profundezas da imensidão do oceano e, claro, aquilo era um delírio e tanto, não posso negar, mas, droga, imagine você, dois terços do mundo, meu amigo, ser parte daquilo deveria ser algo realmente incrível e, sim, é claro, no fundo eu sabia, eu mesmo já era parte daquilo, então, por que me sentia tão apartado? Duvido que os peixes se sentissem daquela forma, talvez as baleias e, talvez por isso, elas cantassem, quem sabe? De qualquer forma, me permiti aquele delírio durante a leitura daquelas palavras que se lançavam sobre mim e me arrastavam para dentro daquilo e depois me jogavam de volta para, então, me levarem outra vez mais, sempre me embalando, às vezes rasgando a madrugada com a fúria de uma tempestade, às vezes quase me permitindo que dormisse, tamanha calmaria e tudo isso era incrível, muito mais do que as aventuras interessantes de Pickett em terra: mulheres, jogo e brigas que me deixavam eletrizado, mas muito menos do que suas histórias a bordo. Eu havia decidido, tinha que arranjar um jeito de ir para o litoral, pelo menos poder ver as ondas rebentarem no porto, talvez eu arranjasse uma carona em um barco, talvez um emprego. Havia pego no sono enquanto arquitetava aquele plano aprazível, sem nem me lembrar que eu não tinha um puto nem para comprar alguma comida e nem para pagar o gás, ou seja, teria que rangar na casa do camarada Johnny uma vez mais, grande Johnny, ele havia arrumado emprego em uma mecânica próxima do centro, já vinha merecendo há um bom tempo, porque vinha comendo o pão que o diabo amassou; não é mesmo idiota isso, dizer que “alguém merece” alguma coisa, seja lá o motivo? Seja lá porque antes o desgraçado vinha passando fome e morando de favor na garagem de uma ex-patroa? Que fosse porque o fulano estudou nas melhores escolas e sempre fora um filho da mãe esforçado, que fosse porque sicrano tivesse um rabo enorme virado pra lua desde antes do nascimento, ora. Mesmo que fosse porque beltrano tinha conquistado o mundo e se tornado um maldito Rei de coroa e tudo, isso não importava, o fato é: não tinha mesmo o mínimo de graça ver Johnny vestido naqueles trapos como antes, sempre que eu podia lhe arrumava algumas roupas, não era grande coisa, mas era o que eu podia fazer, foi na época que tive algum dinheiro, sabe como é, eu era um escritor publicado, vez em quando aparecia alguma merreca que salvava a pátria, o problema todo é que aquilo já não acontecia há uma penca de tempo e já não havia ninguém além de Johnny, quero dizer, Virginia e Lousie também tinha me dado muita força, tantas vezes, os velhos também, mas todos estavam um tanto longe, não era muito fácil aparecer do nada e dizer, surpresa, você pode me emprestar algum, pago assim que tiver, ou seja, não pagarei nunca, se as coisas continuarem como estão e, bem, até então tudo vinha bem, eu não tinha porque me preocupar, mas, agora, não sei, não sei e isso é realmente algo ridículo, claro que é, uma espécie de delírio ao avesso, como se a razão criasse garras e me pegasse pelo pescoço, aí está você, seu pequeno merdinha, eu não tinha dito que você era apenas um pequeno merdinha, atravessou mais barreiras do que podia, agora é HORA DO PAGAMENTO, é isso que esse pequeno monstro da Razão Invertida - mau pensamento, mau - diz para mim, HORA DO PAGAMENTO, oh, droga, é sério, essas preocupações chegam e até então são apenas pequenos sobressaltos entre o real e a fantasia, mas então algo chega mais intensamente, FANTASIA DE VERDADE, se é que isso é possível, droga, penso eu, apenas um livro lançado, quem são meus leitores, meus amigos? Quem são meus amigos, meus leitores? O que vou deixar de legado à humanidade, oh, céus, penso eu – e nesse momento eu poderia estar me abanando com um leque, lágrimas escorrendo pelos meus belos olhos e, na outra mão um lenço bordado com minhas iniciais, oh, oh, MAS QUE BELA MERDA, hein?

- MAS QUE BELA MERDA, hein? Você não vai sair da caverna hoje, Sr. Homem das Cavernas?

Johnny aparece, obviamente, na janela – não é uma janela muito fácil de se chegar, porque meu quarto fica na altura do segundo andar e lá está Johnny: o pilantra precisa subir no tanque de lavar roupa, se pendurar no muro e depois se agarrar na janela e ele adora fazer isso, ao invés de vir até a porta -, traz pão e queijo e entra pra dentro do meu quarto e pergunta se eu posso fazer um café e, bem, Johnny, o gás acabou, hm, droga, ele responde, tudo bem, vou fazer um café e já volto e, dessa vez ele sai pela porta, e vai pelo quintal até a outra construção, alguns minutos se passam, ele retorna com o café, nós comemos, eu sonho com costelas de porco, mas, bem, já são quase três da tarde, era muito mais apropriado mesmo um café e Johnny pergunta que livro é aquele e lhe conto tudo que posso me lembrar sobre Pickett, o marinheiro e suas aventuras, principalmente as que ocorrem no mar, mas também algumas em terra e ficamos um bom tempo por ali, mas sei que logo mais algo acontecerá, é sábado, Johnny provavelmente tem alguma idéia, bem, olho para o pão e para o queijo e tenho vontade de chorar, é estúpido, claro que é, e, se fôssemos realmente adultos, Johnny diria, bem, meu amigo, como é que você vai fazer? Talvez eu dissesse a mim mesmo: o que é que você vai fazer? Mas nenhum de nós diz nada, seguro meu choro, Johnny faz que nada está acontecendo, penso comigo mesmo: e esses poemas que escrevi no último ano, por que não os publico, mas penso, quem são os leitores de poesia, como é que realmente participo do mundo, a poesia é uma maneira, é possível? Havia gente fazendo sucesso pela cidade, havia meios de se arrumar fazendo alguma coisa dessas, eu sabia, tinha visto já espetáculos pela cidade, coisas com luzes, ou então belos atores, gente de altíssima qualidade, agora, e eu? Eu não tinha paciência para aquilo, me recordo até de Ben, um velho camarada, por onde ele andaria agora, por onde andaria Ben, estaria vivo ainda? Ele era um maldito bluesman, havia me ensinado muitos truques, mas nada perto do que ele sabia, quero dizer, esse velhos bluesmen não ensinavam tudo, não assim, tão facilmente, quero dizer, andei com ele numa época, eu devia estar lá pelos meu quinze, Ben era um desgraçado de um velho que estava lá pelos sessenta, perambulava por L.A. com os grandes marginais da música e, bem, ele tocava aquele violão e nunca, eu disse NUNCA, dobrou-se à guitarra elétrica e, pode acreditar, perdeu muita coisa por isso, eu pensava, mas que velho teimoso e burro de uma figa, muitos caras já estavam saltando pro sucesso, sucesso de verdade, grana no bolso, carros da pesada, por terem passado para o outro lado, mas, o velho Ben, ele não, o maldito não arredava pé e, lógico, curtia as noites como ninguém, tudo muito natural, natural demais para mim, eu não conseguia dar conta daquele ritmo, daquela cultura moldada lentamente por séculos, uma espécie de espontaneidade forjada pelo tempo & história, por isso percebi que o meu blues tinha que ser diferente, eu não podia apenas fazer uma cópia daquilo, ele vivia como cantava, mas, como eu dizia, o velho Ben tinha um negócio de permanecer puro, entende, como se aquele fosse o seu espaço, aqui ninguém vai mexer, seus pulhas, e na época eu realmente não podia compreender aquilo, mas, bem, é isso, uma coisa realmente complicada, mas sábado, SÁBADO, diz Johnny, saímos pelas dez da noite, andamos algumas quadras, tomamos o trem, chegamos ao East Village, Johnny diz que vai comprar cigarros, ele entra em um bar, eu não consigo ficar por ali, desculpe-me, meu camarada Johnny, penso comigo mesmo, e, sabendo que ele pode fazer da noite um sonho ensandecido por ele mesmo, giro os calcanhares e me mando de volta, sem dinheiro pra o trem, disposto a andar até minhas pernas caírem, como em um maldito filme de Enrique Días ou num romance famoso de Gray Homer.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Mais um capítulo, parte II

E, assim, vamos a Lincoln, esse meu camarada que era conhecido pelo seu jeito estranho de viver, não sei se consigo construir uma boa definição, pálido talvez fosse um jeito de colocar as coisas, e, bem, que palidez seria essa? Muito difícil explicar, talvez eu começasse dizendo que a palidez por si só não diz muito, até porque eu não posso negar nem mesmo a minha própria palidez e de mais quem quer que seja, pois, já diria Louise, grande Louise e seu olhar inquieto e suas mãos nervosas, nesse tempo, ou se é pálido, ou se é canalha - eu certamente devo ser as duas coisas, sim, sim, e mais outras tantas -, mas, façamos assim, contarei mais sobre Lincoln, ele morava em um quarto construído separado da casa onde morava sua mãe, no mesmo terreno; às vezes eu me perguntava se ele, já um homem com mais de trinta anos, não tinha vergonha de morar sob a asa protetora dela, enfim, parecia que não, e Lincoln era o único cara que eu conhecia que não saía de casa não por medo de assalto ou ataque de abelhas assassinas, aliás, não sei se já lhe contei a história das abelhas assassinas, seres que são uma parcela do resquício infindável de um tempo selvagem envolvido e envolvendo o homem em sua ação civilizatória ao se ver derrubando florestas inteiras como numa tacada de John Fresh, correndo um home run ensandecido, e, bem, parece que nesse processo, as abelhas tinham ficado sem lugar para morar e resolveram sobrevoar a região da grande cidade e trouxeram seu território junto e isso tornou as coisas bem desagradáveis por ali, os bichos faziam suas moradas em cima dos carros, nos telhados, debaixo das camas e picavam quem quer que se aproximasse, até que um grande produtor de mel disse que daria conta da situação, precisava apenas que lhe arranjassem um grande terreno e isso não era algo fácil, afinal, Nova York, meu amigo, você já entendeu, mas logo a prefeitura se encarregou da tarefa, porque as abelhas tinham deixado a cidade em alerta, e, sendo assim, despejaram alguns moradores de um cortiço no centro, houve luta, mas, você sabe como algumas coisas funcionam nessa terra banhada por Deus e os dólares, e depois derrubaram o prédio, limparam o terreno e lá foi Mr. Saint, o grande produtor de mel, e recolheu as abelhas num trabalho de dias e as reuniu naquele terreno em grandes colméias artificiais, esfregando suas mãos e vendo cifrões voarem alegremente em torno de sua cabeça inchada, porém se deu mal, muito mal Mr. Saint, tratavam-se de abelhas selvagens e quando digo selvagens, não estou pra brincadeira. Depois de devastarem as colméias e acabarem com a raça de Mr. Saint - ok, não de Mr. Saint, mas de seus empregados, é óbvio que Mr. Saint não suja as mãos não é mesmo, camaradas - elas se dirigiram para fora da cidade e acabaram com uma plantação de laranjas, por sorte não as laranjas que Johnny, Bill e eu tanto cobiçávamos para nosso empreendimento. Mas onde eu estava mesmo? Ah, sim, Lincoln, é verdade, o único cara que eu conhecia que não saía de casa simplesmente por alguns motivos difíceis de serem detectados à primeira vista. Não poderia ser de outra maneira, é certo, a mãe dele o considerava um depressivo profundo e vivia em tentativas de colocá-lo em planos de recuperação, ou então trazendo gente da igreja para tentar imprimir alguma motivação moral no homem, tudo isso rechaçado por Lincoln com alguma violência divertida, como sua confissão incrivelmente convincente de que era filho do demônio, ao último padre que viera tentar instá-lo a ser mais razoável. E assim seguia Lincoln, entre a cama e a mesa, vivendo de migalhas, dormindo ou escrevendo longos poemas, ou mesmo lendo todos os poetas irlandeses, a escória da Europa, ele dizia, nossos irmãos, com um sorriso largo no rosto, e havia pó pelo chão e teias de aranha no teto e ele não limpava nunca o quarto e não deixava que o fizessem, como certa vez em que Bill resolveu engendrar uma faxina no lugar e foi barrado impassivelmente por Lincoln e me refiro a Bill, o indomável-cheio-de-energia, você sabe, mas Lincoln apenas olhou para o chão e disse, de maneira arrastada, Bill, não faça isso, com uma voz lúgubre e discreta ao mesmo tempo, e Bill retornou à casa da mãe de Lincoln, levando de volta a vassoura e ouviu dela, esse idiota, ninguém consegue tirá-lo de lá, mas aquilo era mentira, vez ou outra, durante o inverno, Lincoln saía com sua bicicleta e demonstrava grande desenvoltura pelas ruas e eu o acompanhava com minha 12 marchas e circulávamos pelas ruas frias e ele não se interessava pelas garotas que eu lhe mostrava e, sim, eu podia sentir que havia medo ali, porém, ao mesmo tempo, não posso negar que o que fazia Lincoln sorrir mesmo eram as ladeiras que encontrávamos pelo bairro, deixando que as bicicletas falassem por si próprias, soltando os freios e as mãos, indo parar em regiões até então desconhecidas por nós, por exemplo aquele bar ao Sul da rua 14, onde se vendia absinto clandestino, que eu e Lincoln comprávamos e trazíamos de volta para seu quarto empoeirado, para que bebêssemos lentamente o negócio e ele lesse um pouco de sua poesia estranha para mim, até que Bill chegava e trazia o violão e ele fazia algumas músicas madrugada adentro enquanto Lincoln pegava no sono, e das duas uma, ou eu também dormia, chapado, ou acompanhava Bill, cantando, ou mesmo rasgando a noite com minha gaita precária, e, bem, nunca levávamos garotas para lá, porque queríamos mesmo era conversar com Lincoln e ele provavelmente não se sentiria bem se as trouxéssemos, talvez nem permitisse que as as coitadas entrassem, mas ele teve uma namorada certa vez, preciso lhe dizer, chamava-se Tina, uma bibliotecária linda e silenciosa, com um cabelo muito enrolado e cheio e escuro e a pele transparente, mas a vi poucas vezes por ali, depois ela desapareceu e Lincoln nunca nos contou o desenrolar daquilo tudo e nunca insistimos, porque sabíamos que ele preferia silenciar a respeito.

Mas, bem, estive na casa de Lincoln, naquele dia, nada demais, apenas uma tarde amena, silenciosa, e Lincoln escrevia e eu apenas encostei em sua cama e li As sete ilhas, de Breakdown, vez ou outra eu comentava algo, ao que Lincoln respondia com algum murmúrio e Breakdown é certamente um dos maiores escritores que já li, muito menos conhecido do que todos os outros contemporâneos seus, e é difícil entender, porque suas narrativas são ondas gigantescas que varrem cidades inteiras num átimo, e tudo isso soando como um sopro de uma criança, sem o tipo de grandeza da maioria dos nossos conterrâneos e muitas vezes imagino que sua impopularidade se deve ao fato dele ter se recusado à escrita objetiva e telegráfica da escola em voga, seus escritos muito mais se desenrolavam como longos pergaminhos transbordando vida - e, sim, você já deve ter ouvido esse papo todo, eu certamente estou reproduzindo a fala de algum desses estudiosos e, bem, provavelmente a conversa esteja soando um pouco pedante então, mas, por que eu deveria me importar? É realmente um prazer falar sobre Breakdown, se você já o leu e se sentiu tocado, é possível que entenda o que estou dizendo, porque é difícil se calar quando o lemos, parece que as frases que ele atira nos atravessam e querem sair para o mundo, rebatendo nos muros, às vezes mesmo derrubando alguns, tamanha sua força, penetrando a carne e o concreto, saindo do outro lado, gerando filhos, outras pequenas frases engatinhando, escorrendo pela baba das crianças de dois anos, criando modestos campos de força que às vezes chegam a parar soldados, nem que por alguns segundos, tamanha sedução e erotismo que são elas mesmas. Sim, sim, concordo, estou exagerando aqui, Breakdown não passa de poesia, mas, enfim, passei uma tarde agradável ali, depois perguntei se Lincoln ia me mostrar o que tinha produzido naquele dia, ele respondeu que ficava para uma outra vez, porque ele não tinha terminado o negócio.

Então era noite e eu queria saber por onde andava Johnny e me dirigi para casa e ver a pensão onde eu morava me fez lembrar que o aluguel estava atrasado e subi as escadas em direção ao meu quarto, logo a seguir procurei algo na geladeira, apanhei dois ovos para fritar, e além disso havia um cacho de bananas e apanhei três delas e esse foi meu jantar, então ouvi a buzina e olhei pela janela, havia um chevrolet azul parado e dentro dele estavam Bill, Johnny e Virginia e não acreditei naquilo e Bill disse, EI, VOCÊ ESTÁ PROCURANDO EMPREGO? NÃO QUER SER NOSSO SÓCIO? E é certo que metade da cidade tinha ouvido aquilo, então apanhei as outras bananas que restaram e saltei as escadas de três em três degraus, fazendo um barulho dos diabos e mergulhei para dentro do chevrolet azul e eu ainda não tinha dito, o negócio era conversível e nem preciso contar que a capota havia sido abaixada e Johnny estava sentado na parte de trás do capô, com os pés no banco traseiro, ao modo de Johnny se sentar em carros conversíveis, Virginia ao volante e Bill ao lado dela, eles estavam fazendo graça, era ele que deveria mudar as marchas, ou seja, tudo precisava ser altamente sincronizado e mesmo assim Bill ainda tinha tempo para contar sobre Stella, uma garota que ele havia conhecido no centro e que ela o havia levado para o litoral e lá ele passou toda a semana até que o marido dela apareceu de surpresa e, ao contrário do que ele pensava, o cara não se enfureceu, comportou-se de maneira bastante cordial, almoçaram juntos os três e o homem até lhe ofereceu cerveja e Bill poderia ter permanecido o resto da vida ali, vivendo às custas dos dois, fazendo sexo à beira mar, mas ele disse que, subitamente, com todo o espaço que o homem lhe dera, era como se não houvesse espaço algum, e então Bill resolveu se mandar, não sem antes jogar uma partida de bilhar com o cara, um baita jogador, Bill contou, você teria gostado de jogar com o homem, Virgo, mas, de qualquer forma, ainda somos amigos, eu, Stella e Josh, seu marido, um dia desses desceremos até a praia, nós todos, Pedro, meu camarada, mas agora estamos nesse novo esquema, temos laranjas nos esperando, mas antes temos muitos pontos para marcar. E Johnny não dizia uma palavra, apenas se concentrava para manter os olhos abertos contra o vento, os olhos semicerrados, liberando pequenas gotículas de lágrimas, e Virginia dirigindo suavemente, as mãos praticamente nem tocavam no volante e ela me perguntou como iam as coisas, daquele jeito que ela costuma perguntar, tímido como de costume, mas repleto de interesse, mesmo que ela tivesse que se concentrar para dirigir a quatro mãos.

Quando vamos às laranjas, talvez eu deva ter perguntado em algum momento, logo na seqüência levantando as bananas que eu trouxera e dizendo redundantemente, eu tenho bananas, e Johnny apanhou uma e a comeu quase de uma bocada só e paramos em um bar, jogamos bilhar, bebemos uísque, saímos sem pagar, porque não tínhamos grana, paramos em uma esquina e ligamos o rádio e começamos a dançar na rua, e nisso algumas pessoas se juntaram a nós, até que um morador do prédio da frente começou a jogar ovos lá de cima, depois cada um de nós teve que dirigir um pouco para mostrar seu estilo, Virginia dirigia descontraída, lentamente, quase nunca freava, e quando o fazia, era de maneira suave, as mãos flutuando sobre o volante, os olhos concentrados na estrada, sempre à direita, trocando as marchas sem forçar o motor, falando consigo mesma, bem, agora vou entrar aqui, esta rua deve ser paralela à oito, sendo assim, duas quadras a seguir deve ter uma praça, aquela onde tem aquele homem que vende algodão doce domingo à tarde e o motorista seguinte foi Bill, ele nunca olhava para pista e nunca parava de falar conosco e tinha o pé pesadíssimo e freava sempre em cima e punha a mão esquerda para fora do carro, ou dependurada, ou gesticulando, e mexia com as garotas na rua e mexia com os caras, com as velhinhas, com os guardas, cachorros e tudo o mais. Johnny também tinha o pé pesado, esticava as marchas até o fim, levando o motor até seu limite, mas ele não tinha gosto em frear, quase nunca o fazia, preferia desviar, mesmo que para isso tivesse que ficar na contramão, ou subir nas calçadas, tirando finas dos hidrantes, fazendo-nos acreditar que era o fim, mas nunca era o fim, Johnny estava ali para dizer que não havia fim, porque logo na seqüência outro obstáculo surgia e pensávamos, agora é o fim, mas ele desviava e assim por diante. Já eu, como meus amigos definiram, era um motorista sonolento, preguiçoso, porque eu me afundava no banco e deixava uma mão no volante e outra no câmbio, e eu dirigia com a boca aberta e a língua de fora, lentamente, deixando meu corpo cair para um lado e outro, conforme vinham as curvas, e eu nunca acelerava demais e fazia uma fila de carros se construir atrás do chevrolet. Por tudo isso, concluímos que, se algo desse errado durante nosso trabalho com as laranjas, Johnny é que deveria dirigir. Mas, se tudo desse certo, Virginia seria a motorista. Bill e eu servíamos apenas para os passeios, porque éramos distraídos demais. Então Virginia queria ir ver os caras do jazz em Portsmouth e nos dirigimos para lá e não havia jazz naquela noite, o que teria nos deixado chateados, entretanto, havia um velhinho branco e calvo com um bandolim e aquilo foi mesmo bonito, passamos boa parte da noite ali, sentados num canto do velho bar de James Sun, nosso camarada, escutando a voz lúgubre do velhinho emendando uma espécie de blues rural lento e fluido, até que percebessemos que, se queríamos laranjas, deveríamos partir urgentemente e foi o que fizémos e, mal passamos pela divisão entre uma cidade e outra, a gasolina acabou, é claro, nenhum de nós tinha se lembrado desse detalhe, e Virginia estava sonolenta e Johnny também e eu repleto de conflitos, sendo um deles a questão, deveria eu faltar ao trabalho um dia mais? Bill continuava elétrico, porém sua energia não parecia muito direcionada à necessidade de conseguirmos gasolina, sendo assim, andamos por cinco quilômetros de volta para a cidade, sentamos em uma praça e ali cochilamos até que o sol nos acordasse. Depois, silenciosos e satisfeitos, cada um de nós retornou para sua devida casa, sem as laranjas, ao menos por enquanto.

Mais um capítulo, parte I

Você precisa saber, sim, é verdade, a coisa toda começa quando Johnny surge com essa idéia de roubarmos laranjas em Salt Lake, quarenta quilômetros dali, onde há toda uma grande plantação destinada ao mercado saudável de suco integral, e Johnny obviamente já tinha arquitetado praticamente todo o plano, recolheríamos dez ou doze caixas das melhores laranjas do país, aquelas grandes e suculentas e amarelas laranjas típicas do Sul, e venderíamos todas na feira, agora, é óbvio, não possuíamos um carro para o empreendimento e possuir um carro, nesse caso, era realmente imprescindível, e aí entrava Bill, alguém sempre de vista límpida, analisando a situação e concluindo que precisávamos apenas "emprestar" um possante sempre que fosse momento de "repormos nosso estoque" e que, ao ter um carro em mãos, deveríamos usá-lo com sabedoria, o que significava, além de aproveitá-lo para o transporte de nosso produto, que também usufruiríamos do tal para outros fins de maior importância, como passeios noturnos e rápidas investidas ao litoral.

E, sim, Bill não se encontrava conosco no dia D e, além desse pormenor considerável, eu me sentia, a princípio, cansado como os diabos, afinal, menos de uma hora antes eu havia estado no escritório, eu, uma mesa, um carimbo e a partir disso é desnecessário explicar a coisa toda, você certamente já sacou, mas, embora o cansaço e a ausência de Bill se fizessem sentir, Johnny e eu sabíamos, éramos grandes homens que se encontravam à beira de mais um passo decisivo em suas vidas, uma típica situação comum para as pessoas empreendedoras, da mesma maneira que havia ocorrido com nossos corajosos antepassados que por aqui haviam estado a construir um mundo mais nobre e civilizado, como o famoso Don Laerte, o espanhol, Don Laerte e sua barba hirsuta e seus cabelos hirsutos e sua alma hirsuta e, bem, se não havia Bill, a parada devia ser encarada por Johnny e eu, e o fizemos com a maior determinação possível, afinal, éramos homens com os olhos em direção ao oeste, ouro, meu camarada, ouro, e como um pioneiro dos tempos de Hick Hook Neel, Johnny apontou para um chevrolet azul e demos alguns passos na direção de nosso Eldorado, Johnny na frente, enrolando um arame em sua mão direita, perguntando-se como deveria usar o arame, e não se tratava de uma questão destinada a mim, mas a ele mesmo, tecendo uma espécie de auto encantamento, parecido com os mantras que os comanches sussurravam para si próprios, na iminência de uma batalha, e na seqüência um homem apareceu, seu rosto branco e gordo colocado na fresta do portão, parecia que ele estivera sempre ali, desde os mais remotos tempos, muito antes do chevrolet azul e Johnny e eu e o próprio portão existirem, e, ao sermos questionados por esse homem das nossas intenções para com o carro, apenas olhamos entre nós, Johnny e eu, e meu camarada mandou uma história terrivelmente inverossímel de como seu pai havia morrido em um acidente, quando se dirigia a Nebraska, um acidente envolvendo uma carreta e um carro idêntico aquele e de como seu próprio pai, depois de morto, assombrava-lhe pedindo que comprasse um chevrolet azul e terminasse a viagem a Nebraska, e, bem, será que o bom homem não se prestaria a lhe vender o automóvel e é claro que o homem disse um sonoro "não", e sentimos como se, a qualquer momento, se fizéssemos qualquer movimento errado, presenciaríamos aquele homem a mandar seus vinte e oito amigos boinas verdes saltarem de trás das plantas do belo jardim da casa para que finalmente nos matassem, depois, é claro, que também nos torturassem para que entregássemos os outros integrantes da nossa quadrilha internacional e, sendo assim, Johnny e eu giramos os calcanhares em direção ao primeiro bar que encontrássemos porque precisávamos de uma partida de bilhar e um trago, a noite estava sendo dura demais conosco.

A caminho do bar, é verdade, em algum momento aquela sensação apareceu, a mesa e o carimbo, mesmo ali, no excelentíssimo meio fio, enquanto eu galgava o mundo ao lado de Mr. Beefheart, meu Johnny, e ele criteriosamente mastigava um chiclé encontrado no bolso da calça e havia Dona Ruth, sim, Dona Ruth, porque Dona Ruth, despedida ainda naquele mesmo dia, um pouco antes da minha aventura em busca do chevrolet azul, possuía as melhores pernas, as mais torneadas maravilhas de todos os escritórios da Life Co., sendo Life Co. a mega coorporação onde eu trabalhava à época, e lhe digo, não havia nada mais agradável para se fazer nas oito horas que eu permanecia dentro do prédio sede da Life Co. do que apreciar as pernas de Dona Ruth... nem mesmo o cafezinho era tão agradável do que a imagem das pernas lisas e provavelmente cheirosas de Dona Ruth, sim, provavelmente cheirosas, eu nunca tivera o prazer de me aproximar tanto das pernas desta distinta senhora, e, uau, mas, então, nada mais havia para se ver naquele lugar, eu tinha perdido as pernas de Dona Ruth e Dona Ruth tinha perdido seu emprego, como ela compraria creme para cuidar da pele? E, meu amigo, QUE PELE MACIA AQUELA, até me lembrava a história de Maxwell Krakatov, o famoso serial killer que, naquela época tinha deixado toda a nação de cabelos em pé, o maluco sequestrava as mulheres e lhes arrancava a pele, colecionava as peles das suas vítimas, por Cristo, um obssessivo, aquele doente, mas, enfim, aquilo tudo me fazia pensar que eu não agüentaria por muito mais tempo, trabalhar para comprar comida e comprar comida pra trabalhar e ainda me encontrar destituído das pernas de Dona Ruth. Era demais.

E Johnny me tirou por um momento daquela imersão no fundo do pântano cíclico da morte, me cutucou e dispôs um copo de uísque para mim, é por conta da casa, gracejou, e, a seguir, pediu uma ficha para o garçon, mandamos ver no bilhar, o bar vazio, agradável, nos incentivava a permanecer e permanecer, e assim foi, mas logo me lembrei da Life Co. novamente, porque sim, Life Co., meu amigo, e eu contei tudo a Johnny, e ele trouxe mais uísque, e Johnny parecia estranho, lacônico de um jeito que ele não costumava ser, porque quando digo lacônico e me refiro a Johnny, não menciono a ausência de palavras, quero dizer que Johnny se apresentava com um típico silêncio à la Johnny, que é o da ausência sim de acrobacias, e eu não conseguia apreender os motivos daquilo e ele balbuciou em algum momento, as laranjas, as laranjas. Bem. Devia ser já alta madrugada e apesar da atmosfera agradável e tranqüila do bar, a noite não engrenava, nada se movia, havia as bolas coloridas do bilhar, os tacos do bilhar, o garçon, um freguês, outro, mais um, Johnny, eu, as laranjas, a Life Co., cada coisa em seu lugar; mesmo uma bela mexicana que chegou acompanhada do namorado não movia uma palha sequer, ela se sentou ao lado do namorado, o namorado se sentou do lado dela, os olhos dela estavam acima do nariz, o nariz acima da boca, a boca acima do queixo e assim por diante, como deve ser. Suspirei em algum momento e já era muito tarde, fui a pé para casa e, quando deitei, o relógio marcava quase quinze para as seis e, como verdadeiro trabalhador que era, acordei às seis em ponto, firme até onde poderia, e foi neste estado que escorreguei pela cama; quando dei conta de mim, havia uma multidão dentro do trem que me cercava, me acomodava em pé, e assim dormi, e assim terminei em Point Ville, já sentado em um banco, sem saber como, há vinte quilômetros da Life Co. Jesus! Tive um pesadelo terrível durante esse cochilo, no meio da barriga, Dona Ruth tinha uma boca enorme e de lá uma voz medonha dizia coisas terríveis e Dona Ruth depois arrancava meu pau com as mãos ágeis de datilógrafa e dava o negócio para a boca comer e, rapaz! Eu estava realmente muito atrasado! Decidi não trabalhar, vomitei em uma lixeira, bebi um café, comprei uma passagem de volta, retornei dormindo todo o caminho, minha cabeça doía, quase passei direto pela estação onde devia saltar, saltei, parei em uma lanchonete, tomei um desjejum digno, olhei para a rua, havia um sol tímido, senti-me forte, um verdadeiro touro selvagem do oeste, assobiei para um garota que passava na rua, ela sorriu para mim, resolvi parar na casa de Lincoln, meu camarada Lincoln, e torci para que a idéia das laranjas realmente desse frutos.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Apresentando Richard Madson.

É verdade, eu me recordo bem do Richard, irmão do Mike; Mike, três vezes preso até que lhe dessem um fim. Éramos apenas crianças, à época, literalmente. Gostava muito de poder passar as tardes sentado à cerca do Casarão, logo à esquina. (O Casarão, em cujo quintal às vezes jogávamos baseball; as árvores nas quais subíamos para depois cuspirmos nos que tinham ficado em baixo. O Casarão, de cujos donos nunca tivémos notícia. O Casarão, depois demolido para ceder lugar a um amontoado de casas, depois demolidas para cederem espaço a um conjunto de lojas, hoje decadentes.) Volta e meia apareciam os outros e nada fazíamos que não fosse matar o tempo. Em algumas ocasiões alguém aparecia com o último número dos quadrinhos do Homem Incrível, este, na época, ainda longe dos cinemas; o Homem Incrível, apenas uma bobagem para moleques, ou seja, para nós; o Homem Incrível e sua capa vermelha e seus olhos azuis, saltando por cima dos prédios então nem tão altos, superando um tipo de morte que para nós aos poucos já desaparecia: os hospitais ainda nem eram tantos; quantas vezes não desci com meu pai até o velho Honky Eagle, mistura de comanche com espanhol, para tomar as garrafadas dele e me curar de alguma gripe naquela época ainda algo quase preocupante? (Me recordo bem de meu avô e suas mãos enormes, dedos duros e repletos de calos, seus últimos meses na cama de seu quarto, aquele cheiro de fim rondando a casa toda e boa parte da nossa rua, cheiro esse que jamais me esqueci e os tantos meses que meu pai andou para cima e para baixo com sua gravata preta puída, após a morte de meu avô.) Mas também já tomávamos Lee Buffallo, o tônico para todos os males, espetacular descoberta científica e tecnológica, sempre anunciado nas rádios, durante os programas de Martin L. Brown, um verdadeiro herói para mim - quantas canções não aprendi e ainda hoje não cantarolo em tardes amenas, anunciadas, à época, pela voz aveludada de Martin L. Brown, em seu programa vespertino? E líamos o Homem Incrível - que fazia muito mais sentido do que Stonehard, mesmo que gingássemos como o próprio, um cowboy desbravador do Oeste, posto que nenhum de nós montava à cavalo - e os bandidos mereciam cada surra que levavam: eram bandidos, afinal. E eu seria como meu pai, um dia, no futuro, trabalharia em uma daquelas fábricas enormes, seria a base do progresso humano, como ele mesmo costumava dizer, ao encaçapar alguma bola no bilhar do Velho Jacob. E Richard aparecia vez em quando, no começo muito quieto, isto é, Richard nunca deixou mesmo de ser, do jeito dele, quieto, mas, no início, ele parecia ser apenas mais um de nós, mesmo que alguns fizessem mais estripulias que outros - no final, éramos mesmo apenas um bando de moleques vadiando pelo bairro. E então Richard me apareceu com uma flauta e, até aquele momento, nós, meninotes ríspidos da rua 12, nunca havíamos visto qualquer coisa parecida e, bem, para meninotes ríspidos da rua 12 - e muito provavelmente para os meninos ríspidos de muitos outros lugares - qualquer coisa não compreendida era cruelmente taxada como coisa de veado. E Richard se tornou o veado da turma, não que ele já não fosse: depois que os garotos começaram a chamá-lo de veado e mariquinhas e outros nomes como esses, pude perceber que ele realmente só podia ser veado com aqueles lábios grossos e vermelhos e a pele muito branca e os cabelos escorridos caídos nos olhos grandes e as mãos frágeis demais para que ele conseguisse subir nas árvores. E então Richard não mais freqüentava a nossa roda de colegas que ficavam no Casarão ou procurando briga com os meninos das outras ruas ou atirando em passarinhos ou lendo o Homem Incrível e comentando dele as aventuras maravilhosas. Não freqüentava em parte, porque ele sempre estava nos arredores, olhando de longe, ou se aproximando até que fosse escorraçado e isso era como as coisas se davam entre nós e Richard e. Bem. Richard hoje é músico na Orquestra Municipal e faz dupla com uma cantora folk, já gravaram um LP e tudo, e hoje ele aparece vez ou outra nas festas que a gente dá, e nos cumprimentamos cordialmente quando nos encontramos no supermercado, mas, muito antes disso, numa tarde de sol, quando eu voltava da venda de Mrs. Clieverlan, topei com Richard sentado na Praça 8, tocando sua flauta e bem. Era realmente bonito aquilo. Não titubeei em sentar ali por perto e ouvir um pouco. Nós não conversamos muito, não por má vontade, mas a verdade é que não tínhamos muito a dizer, nossas cabeças não funcionavam direito para essas coisas, muito mais a minha, eu tinha 8 ou 9 anos. Em algum momento, a seguir, eu, Pedro Miguel, um verdadeiro macho, grande representante da espécie, estava sobre o corpo de Richard e realmente aquilo estava muito bom, não sei precisar exatamente o quê, mas estava gostoso a valer, e ficamos nos mexendo um pouco, nos esfregando um no outro, atrás dos arbustos, até que um de nós se cansasse. Fui para casa sem pensar muito no assunto e Richard sumiu por um tempo e, quando Norbert lhe deu umas bifas, algumas semanas depois, atrás da Igreja, o chamando de mulherzinha dos diabos, eu realmente devo dizer que nada fiz e que realmente não tive muita vontade de fazer coisa alguma - parecia não haver mentira no meu movimento, naquela época eu realmente acreditava que Norbert bater em Richard era algo absolutamente normal.

sábado, 9 de maio de 2009

Apresentando Ginger Honeyspoon, morta ao ser atropelada em uma avenida em Nova York - segunda versão.

Sim, Josh me ligou às duas e quarenta e tantos, naquela terça-feira, numa fase em que eu me encontrava desempregado, e eu mal havia pegado no sono, mesmo assim, no instante em que ouvi a voz de Josh, não o reconheci, não compreendi nada do que ele dizia, e conseguia pensar apenas em castrar os gatos de toda a cidade, porque cantavam "nós gatos já nascemos pobres" o dia inteiro, como se me convidassem para cantar junto, porém eu não podia, ou achava que não podia, minha mãe vivia me ligando para saber se eu já tinha um novo emprego, Sr. Landblood vivia me procurando porque o aluguel estava atrasado - de novo - e eu sabia, logo Johnny apareceria, ou qualquer um de meus amigos, e algo iria acontecer, e eu já não sabia direito o que estava fazendo da vida e, sim, aquilo era ridículo, que diferença fazia se o telefone tocava às duas da tarde ou às duas da madrugada? Mas, para mim, aquilo se tornava cada vez mais apavorante, os dias em que minha sobrevivência me parecia ameaçada, como se um tiranossauro pudesse entrar porta adentro e me devorar, então finalmente reconheci a voz de Josh, esqueci os gatos, e ele me disse que Ginger havia sido atropelada, mas que, aparentemente, não havia sido nada grave; quase perguntei qual o motivo dele me ligar para me contar aquilo, mas evitei ser rude, e Josh me informou que se encontrava no Norte, com sua cia. circense, e tudo ia muito bem, mas, por isso mesmo, não poderia retornar ainda, sendo assim, perguntou se eu não poderia visitar Ginger, sim, amanhã, Josh, claro, e ele me perguntou se eu não poderia ir já naquele momento, porque as noites em um hospital eram mesmo muito solitárias e ninguém ainda havia feito uma visita a ela, então, dessa maneira, coçando os olhos e bocejando, respondi afirmativamente, e então desliguei o telefone e fui ao banheiro, tomei uma ducha, e pensei se aquilo tudo não era um sonho esquisito e quase liguei para Josh para confirmar, porém tive vergonha e carreguei a bicicleta até a rua, não sem antes comer um sanduíche de queijo do dia anterior que eu havia guardado na geladeira e agarrar minha mochila e nela botar um livro de Fireburn, o poeta cego, para dar de presente a ela.

A noite estava úmida, o asfalto ligeiramente molhado pelo orvalho; pedalei lentamente pela rua, atravessei a 23, entre os moradores de rua e as meninas da Central, 10 mangos a chupada. Parei numa loja de conveniências, na esquina com a 21, comprei dois maços de cigarros, a noite seria longa, entreguei uma nota de 10, o troco peguei em balas, mandei uma para dentro, era doce demais, fiquei enjoado, cuspi fora o negócio, enquanto montava na bicicleta, depois guardei as restantes no bolso, talvez Ginger gostasse, segui em frente, uma ambulância rasgou a Avenida, em frente ao Finger's, no mesmo local onde certa vez Ginger havia me deixado esperando horas, a pilantra, e então, é óbvio, iniciei uma longa viagem nostálgica, imaginando a primeira visão que tive de Ginger, cerca de seis anos antes, numa dessas noites enlouquecidas, e lá se encontrava ela, no Martin's, seus olhos perdidos e seu jeito confuso de dizer se gostava ou não das pessoas já ficara tão claro para mim naquele dia, e aquilo parecia problema à vista, mas havia também suas pernas tão bem desenhadas e seu jeito fluido de se mover, e seu interesse em poesia, então, já naquela noite as coisas ficaram bem estranhas para mim, se é que você me entende.

E como Ginger terminaria ficando com Josh? Bem, naquela época Ginger era apaixonada por Lincoln F. e Lincoln F. era apaixonado pela guerra que acontecia do outro lado do mundo; Lincoln F. acreditava piamente na Liberdade e havia se alistado como voluntário nas fileiras da legião estrangeira à favor da Birtsmânia, combatendo os terroristas sloveínos, sendo assim, Ginger enviava longas cartas de amor repletas de perfume de rosas para ele, e recebia como resposta raros bilhetes enxutos e telegramas de uma linha, e, desta maneira, penso poder formular a seguinte seqüência matemática: Pedro - Ginger - Lincoln F., porém, tal lógica seria derrubada logo com o fim da guerra, posto que, Lincoln F., de retorno, pediu Ginger em casamento e foi veementemente rejeitado, situação em que, finalmente, tive uma chance, sendo esta, obviamente, aproveitada, o que fazia a fórmula se tornar, então, Lincoln F. - Ginger - Pedro - Ginger, mas aquilo duraria realmente muito pouco, porque Pedro, quero dizer, eu, trouxe Josh, um amigo que eu havia conhecido na fronteira com o Canadá, sem imaginar o que aconteceria, para esta maldita cidade e, na seqüência, logo teríamos Pedro - Ginger - Josh - Ginger, o que destruiria meus planos com Ginger, e que me lançaria de volta a Elsie, para que morássemos juntos uma vez mais, não sem antes eu experimentar o inferno que é se sentir rejeitado e etecétera e isso me faz lembrar de Riverside, aquela maldita noite em que nos atrasamos e tivémos que dormir em um hotel de beira de estrada, então Ginger quis um quarto com duas camas e tudo estava bem, eu sabia exatamente em que pé as coisas andavam entre nós, mas, então, subitamente, antes de dizer boa noite, ela perguntou se eu não queria dormir com ela, e, bem, rapaz, não se nega o pedido de uma garota, não é mesmo, e yes, é claro, me deitei tranqüilamente ao lado dela, num movimento misto de quem ainda tem apenas treze anos e não sabe exatamente o que fazer e de quem é o dono do galinheiro, e, na seqüência, depois de alguns minutos, beijei-lhe os ombros e recebi uma espécie de solavanco no rosto e, é verdade, tentei mais uma ou duas vezes, afinal, aquilo poderia muito bem ser uma espécie de jogo, e era, mas não do jeito que eu imaginava, sendo assim, passei a noite olhando para o teto e, mais tarde, liguei a TV, sem arredar pé daquela maldita cama, e passava o desenho de Jimmie, o filhote de ornitorrinco, e naquele episódio, Jimmie encontrava-se só em casa e, enquanto Martha, a mãe ornitorrinco, não retornava, Jimmie resolveu comer todos os biscoitos que ficavam em cima do armário e, sendo aquilo demais para ele, acabou por vomitar tudo na pia, indo, logo depois, se esconder detrás do aparelho de televisão - aquele era seu local favorito para se esconder, porque ficava quentinho, quando a TV se encontrava ligada -; mas então a manhã despontou e saí da cama, andei até o banheiro, lavei o rosto, escovei os dentes e chamei Ginger, tínhamos que pegar a estrada.

Com aquelas imagens na mente, resolvi fazer andar o programa que estipulei enquanto tomava aquela ducha, após a ligação de Josh, o que significava descer a bicicleta até a rua, comprar cigarros, e estabelecer uma parada onde eu pudesse escrever algo a Ginger, na contracapa do Fireburn, antes de chegar ao hospital, e aquele local parecia mesmo propício para esta etapa da epopéia, uma praça com um banco instalado abaixo de um poste; desta maneira segui até o banco e me acomodei no lugar; quando abria o livro e pensava em algo, dei com um gatinho malhado, um filhotezinho desgarrado da mãe, e, como ele parecesse triste e faminto, botei-o dentro da mochila, Ginger vai gostar de você, bichano, vai te dar um nome, banho, leite, e brincar contigo, e comecei a escrita sem nenhum planejamento do que queria realmente dizer a ela.

Nunca vou me esquecer de Movetown, aquela temporada em que fizemos tanto, querida, lembra-se de Louie e Fred e Camilla, com seus cabelos curtíssimos? Fico pensando quão difícil às vezes parece ser falar sobre aqueles tempos, quero dizer, acho que você entende, embora, eu mesmo, muitas vezes não saiba bem o motivo desta dificuldade. Me recordo daquele dia em que atravessamos o rio para nos juntarmos ao pessoal-antes-odiado-do-Flitsburn, que surpresa aquela festa que antes parecia impossível, e agora estávamos lá, dançando e nos divertindo a valer com nossos ex-rivais - e eu já me pegava falando daquele jeito esquisito de Flitsburn e pensei: UAU! Isso está realmente acontecendo? O que o futuro nos guarda, isto é, se isso é possível, o que pode vir "depois", eu me perguntava, porém, querida, eu não percebi que era ali a coisa toda, não havia "depois", afinal, há quanto tempo não vejo Flitsburn? Nossa, há muito tempo, mas, e então? E eu pensava tanto como a vida seria para nós dois, Ginger, isto é, íamos ter filhos, viajaríamos o mundo, roubaríamos bancos juntos, viveríamos sem casa, morando aqui e acolá, seríamos famosos? E você estava realmente deslumbrante, naquele dia, como em todos os outros, mas naquele dia, naquele dia, oh, droga. E nem me dei conta de como era descer aquele rio, como foi que o descobrimos, quero dizer, ele esteve sempre ali, mas a gente demorou a perceber como poderia ser bacana descer a corredeira de barco, e descobrimos, cada descida era uma primeira vez e era preciso se molhar de verdade para conseguir vencer aquela imensidão de água, entrar nas ondulações da coisa toda, o rio, lembra-se? Bem. Nesse momento sigo para o hospital, crendo que certamente você está bem, o que me permitirá, como decido agora, neste exato momento, deixar apenas esse bilhete escrito nesse livro - é aquele Fireburn que você uma vez havia pedido emprestado, como você já deve ter notado -, evitando, assim, que nos encontremos, o que causaria uma situação constrangedora e desnecessária. Com amor, Pedro.

Então gostaria de fazer um salto temporal - ah, as técnicas narrativas -, sou eu de retorno do hospital, empurro a bicicleta e rio um bocado, na verdade, em algum instante, sinto que nunca vou conseguir parar de rir, e é nesse momento que paro sobre a ponte Horksheirer e digo, sem motivo aparente, para mim mesmo: nossa literatura se tornou apenas uma narrativa do quotidiano, sem ao menos imaginar o que quero dizer com aquilo, e, sendo assim, logo depois, atiro o livro de Fireburn o mais longe que consigo, penso na voz rouca da recepcionista do hospital, Ginger Honeyspoon? Lamento, senhor, mas, infelizmente, ela não resistiu à cirurgia.

Tudo isto narrei, desta exata maneira, a Bill e Virginia, em um bar, antes mesmo de me embebedar, porém, omiti que, Ginger, na realidade, se encontrava, naquele momento mesmo da narrativa, trabalhando como dançarina em alguma casa no Leste, ganhando pouco, mas aparentemente bem, ainda em forma, talvez apenas um pouco mais silenciosa do que de costume.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

E, é claro, Annie estava maluca para ver o Show de Jammie and his dogs.

por Pedro Miguel, para Revista Q.

Bem. Eu não nego que Jammie talvez ainda tenha algo a dizer, isto é, talvez ainda consiga enganchar letras inquietantes em freqüências de energia pura. Mas não sei. Isso tudo pode ser muito bem apenas mais alguma balela desses jornalistas gonzo preguiçosos - o que não é realmente um problema, digo, ser um jornalista gonzo preguiçoso, isso até tem lá o seu charme -, mas o que eu pensava logo se concretizou: Jammie, ainda que estivesse em boa forma, apesar dos mais de cinqüenta anos, mais da metade chafurdando na lama, ficava no mínimo a trinta metros da grade de proteção, o palco longe demais; às vezes era impossível dizer que era ele mesmo. Vai saber. Você, que provavelmente estava lá também, vai primeiro dizer que os grandes shows são assim mesmo. E depois talvez argumente que tem essa coisa da energia da multidão, como isso pode transformar um show em algo maravilhoso e vai falar sobre as grandes concentrações de pessoas, como são incríveis, e eu talvez até concorde em parte - daria para contra argumentar facilmente, eu acho -, mas o fato aqui é que estamos falando de Jammie and his dogs, meu amigo, eu tive três cópias em vinil de Refuse the Law, todas gastas e repostas, na minha adolescência, porque bem, era como se eu já soubesse, à época, que, de alguma maneira, Jammie pudesse nos ensinar alguma coisa sobre desobediência, num tempo em que, quero crer, berrar em um microfone ainda era mesmo um estilo de vida e não apenas um negócio que você pode comprar à 10 dólares no supermercado, por mais ingênuo que dizer isso pareça.

E então estamos nós dois e mais dois amigos de Annie, Jerry e Louie, e há pelo menos o quê? Pelo menos umas trinta mil pessoas por ali e sim, gosto de me meter em enrascadas, mas. Quero dizer, às vezes é ótimo se meter em enrascadas, pneus furados, caminhos obscuros, falta de grana durante a noite, gente chata, vazamentos no telhado, brigas com vizinhos, fila no banco, tudo isso pode se tornar uma pequena aventurazinha, se você deixar rolar. Se. E, é claro, o fato daquilo estar cheio como o inferno e das pessoas todas pisarem no meu pé e da cerveja custar cinco vezes mais e de que Jammie, ainda que estivesse em boa forma, não poderia nunca lembrar a lenda do homem que rolava em cacos de vidro e que brigava com gangs inteiras de motoqueiros e que fugiu durante onze meses do FBI, ainda mais sendo um ponto distante no palco, tudo isso, meu amigo, apenas tornava tudo pior. Ali estava um bom show, bom demais, se você quer saber - apesar da bateria cobrir a guitarra em I don't have home to come back - , mas, não estou certo se Jammie era mesmo humano, pra ser sincero. Quero dizer, ele até sorria, da beira do palco, e dava alguns saltos para mostrar que a idade e uma fase com drogas pesadas nem sempre arrasam com um homem, mas não sei, não sei.

Talvez você diga, bem, meu amigo, você não tem mais idade para a coisa e eu direi, talvez você tenha razão. Talvez. Porque boa parte das pessoas ali eram até mais velhas do que eu, se você quer saber a verdade. E isso não significa que a música do velho Jammie não pode tocar os mais novos, também não é isso. Tem esses moleques daqui do quarteirão, eles me conhecem como Joey's Uncle, por causa de Joey, e outro dia eles estavam em casa e eu disse a Annie, ei, o que será que essa molecada ouve e, bem, eles têm um gosto bastante eclético - eu sei, essa palavra é realmente horrível, mas - e isso tem um lado bom, claro, e um lado terrível, mas então coloquei, sem avisá-los e sem fazer nenhum comentário, Jesus I haven't got what you've said, man, em um volume médio e o óbvio aconteceu, eles logo estavam interessados em saber o que era aquilo - menos Joey, que tem uma certa resistência ao que eu lhe apresento, talvez por não querer que eu substitua o pai dele - e todos eles logo estavam batendo o pé junto ou tentando cantar o refrão, imitando a voz de pato rouco de Jammie. Óbvio. Música com batida repetitiva, melodia simples - o refrão é incrível - e uma letra genial, que permite desde uma leitura rasteira até profundas elucubrações críticas a respeito do que nos ensinam, desde pequenos, sobre ser pecador, enchendo nossa cabeça de terrores infindáveis. Voi lá, os garotos sabem das coisas.

Após o show fiquei pensando se não desejava que fosse diferente, talvez eu sentisse falta de algo. Como se eu quisesse que o show de Jammie se enquadrasse no velho esquema de juntar uma turma e fazer alguma coisa juntos: música, música! Sempre me pareceu muito mais excitante um show com os caras ali, saltitando na minha frente, e poder cumprimentar o cara que mandava ver na guitarra, logo depois do show, e de ser amigo de infância do baterista, e depois também fazer o meu próprio barulho e fazer alguma coisa realmente legal, que fala de nós mesmos, de nossos sonhos e dores, e que dura o tempo de se estar ali.

E então estamos presentes ao concerto de Mr. Jammie and his dogs e uau. Um barulho dos infernos e eu realmente queria não ter ido. Aquilo parecia uma boa propaganda de cerveja - impressão reforçada pelos cartazes imensos com os logos da Grift - , com um homem sem camisa gritando ao microfone, tentando, ao meu ver, parecer trinta anos mais novo. Não sei, não sei. De qualquer forma, já que eu tinha ido, resolvi me divertir ao menos um pouco: primeiro contei o número de pessoas com cabelo branco presentes; depois o número de meninas uniformizadas com camisetas estampadas com o rosto do velho roqueiro; então acabei indo para o fundo da pista, onde existia algum espaço e fiquei ali deitado, até que uns garotos sentaram ao meu lado e eles pareciam um pouco entediados e eu perguntei o que eles estavam fazendo ali e eles me disseram que o pai os havia trazido e eu disse que o pai deles parecia um cara legal e eles disseram que sim, mas que às vezes passava dos limites.