quinta-feira, 7 de julho de 2011

Estrada abaixo I


Vamos dizer que as coisas ficaram um pouco estranhas, então, silenciosas e escuras, mas não silenciosas e escuras como quando chega o fim de uma festa, porque nesse caso você vê as pessoas que restaram nos cantos, elas conversam baixo, um ou outro dorme no sofá da sala, alguém arranha alguma bela e triste canção na varanda, sempre há algum corajoso dançando sozinho na cozinha, você sente um vento gelado e eletrizante chegar da rua, as luzes se encontram quase todas apagadas, alguns já aguardam o nascer do sol, quase todo mundo já se foi, permanecem aqueles que ou não tem o que fazer, ou não arrumaram carona, ou que ainda estão com suas baterias cheias, prontos para irem dali até o paraíso, ou ao inferno, ou a qualquer outro lugar onde ainda possam se divertir, dar pequenos saltos, ou mesmo apenas irem para suas casas, ainda excitados por uma grande noite – e tantas outras virão, pensam – e talvez possamos reconhecer entre essa gente alguns que pensam em levar a festa para fora dela mesma, como se dissessem, vamos abusar da vida, meus camaradas, ou então aqueles que festejam de outras maneiras e é justamente naquele término de noite é que tiram algum prazer entre uma baforada longa de charuto, alguém dormindo em seus colos, a sensação de se estar rodeado de amigos e, bem, claro, se eu continuar serei cada vez mais como um cão perseguindo o próprio rabo, mas tudo isso para dizer, não, nada silencioso & escuro como isso, os dias estavam mais para outra coisa muito menos produtiva.

Sei que passei cerca de oito meses morando com Johnny, mais exatamente em um quarto no fundo da casa que ele havia alugado e, apesar de me felicitar sempre que o maldito aparecia dependurado na janela do meu quarto, não podia dizer que estava tudo bem. Quero dizer, sei que ele nunca pensaria em me pedir para sair, porque eu realmente não causava problemas, isto é, nunca tive coragem de me tornar um junkie, tampouco consegui me tornar um marginal a sério, no máximo trazia alguma comida do mercado e, por não ter dinheiro, precisava, vamos dizer, aproveitar um pouco mais do que as promoções. Mas nada além disso: nem dei festas incríveis, no geral acabava só aparecendo nas festas dos outros, sendo assim, não é que eu fosse um inquilino que causasse problemas, porém, algo me incomodava, talvez um maldito sentimento idiota de reciprocidade, como se eu devesse algo para o meu camarada pelo motivo de não pagar um puto para estar ali naquele quarto dos fundos. Mas, e daí? Eu já tinha morado trinta anos na casa dos meus pais, vivido ao todo uns quatro anos (entre separações e retornos) às custas de Elsie, qual era o problema de morar com meu velho camarada de bilhar, Johnny Beefheart?

Sei que eram duas da tarde, eu tinha ido às seis para cama e não por ter tido uma noite “agitada”, mas sim porque não conseguira dormir, em minhas mãos havia caído um volume incrível do diário de Pickett, o marinheiro, e tive que devorá-lo de uma só vez, trezentas e dezessete páginas. Nunca pude imaginar que o mar pudesse me atrair tanto assim, talvez eu devesse ir parar no litoral, no fim das contas, pois eu realmente podia me sentir como se nascido nas profundezas da imensidão do oceano e, claro, aquilo era um delírio e tanto, não posso negar, mas, droga, imagine você, dois terços do mundo, meu amigo, ser parte daquilo deveria ser algo realmente incrível e, sim, é claro, no fundo eu sabia, eu mesmo já era parte daquilo, então, por que me sentia tão apartado? Duvido que os peixes se sentissem daquela forma, talvez as baleias e, talvez por isso, elas cantassem, quem sabe? De qualquer forma, me permiti aquele delírio durante a leitura daquelas palavras que se lançavam sobre mim e me arrastavam para dentro daquilo e depois me jogavam de volta para, então, me levarem outra vez mais, sempre me embalando, às vezes rasgando a madrugada com a fúria de uma tempestade, às vezes quase me permitindo que dormisse, tamanha calmaria e tudo isso era incrível, muito mais do que as aventuras interessantes de Pickett em terra: mulheres, jogo e brigas que me deixavam eletrizado, mas muito menos do que suas histórias a bordo. Eu havia decidido, tinha que arranjar um jeito de ir para o litoral, pelo menos poder ver as ondas rebentarem no porto, talvez eu arranjasse uma carona em um barco, talvez um emprego. Havia pego no sono enquanto arquitetava aquele plano aprazível, sem nem me lembrar que eu não tinha um puto nem para comprar alguma comida e nem para pagar o gás, ou seja, teria que rangar na casa do camarada Johnny uma vez mais, grande Johnny, ele havia arrumado emprego em uma mecânica próxima do centro, já vinha merecendo há um bom tempo, porque vinha comendo o pão que o diabo amassou; não é mesmo idiota isso, dizer que “alguém merece” alguma coisa, seja lá o motivo? Seja lá porque antes o desgraçado vinha passando fome e morando de favor na garagem de uma ex-patroa? Que fosse porque o fulano estudou nas melhores escolas e sempre fora um filho da mãe esforçado, que fosse porque sicrano tivesse um rabo enorme virado pra lua desde antes do nascimento, ora. Mesmo que fosse porque beltrano tinha conquistado o mundo e se tornado um maldito Rei de coroa e tudo, isso não importava, o fato é: não tinha mesmo o mínimo de graça ver Johnny vestido naqueles trapos como antes, sempre que eu podia lhe arrumava algumas roupas, não era grande coisa, mas era o que eu podia fazer, foi na época que tive algum dinheiro, sabe como é, eu era um escritor publicado, vez em quando aparecia alguma merreca que salvava a pátria, o problema todo é que aquilo já não acontecia há uma penca de tempo e já não havia ninguém além de Johnny, quero dizer, Virginia e Lousie também tinha me dado muita força, tantas vezes, os velhos também, mas todos estavam um tanto longe, não era muito fácil aparecer do nada e dizer, surpresa, você pode me emprestar algum, pago assim que tiver, ou seja, não pagarei nunca, se as coisas continuarem como estão e, bem, até então tudo vinha bem, eu não tinha porque me preocupar, mas, agora, não sei, não sei e isso é realmente algo ridículo, claro que é, uma espécie de delírio ao avesso, como se a razão criasse garras e me pegasse pelo pescoço, aí está você, seu pequeno merdinha, eu não tinha dito que você era apenas um pequeno merdinha, atravessou mais barreiras do que podia, agora é HORA DO PAGAMENTO, é isso que esse pequeno monstro da Razão Invertida - mau pensamento, mau - diz para mim, HORA DO PAGAMENTO, oh, droga, é sério, essas preocupações chegam e até então são apenas pequenos sobressaltos entre o real e a fantasia, mas então algo chega mais intensamente, FANTASIA DE VERDADE, se é que isso é possível, droga, penso eu, apenas um livro lançado, quem são meus leitores, meus amigos? Quem são meus amigos, meus leitores? O que vou deixar de legado à humanidade, oh, céus, penso eu – e nesse momento eu poderia estar me abanando com um leque, lágrimas escorrendo pelos meus belos olhos e, na outra mão um lenço bordado com minhas iniciais, oh, oh, MAS QUE BELA MERDA, hein?

- MAS QUE BELA MERDA, hein? Você não vai sair da caverna hoje, Sr. Homem das Cavernas?

Johnny aparece, obviamente, na janela – não é uma janela muito fácil de se chegar, porque meu quarto fica na altura do segundo andar e lá está Johnny: o pilantra precisa subir no tanque de lavar roupa, se pendurar no muro e depois se agarrar na janela e ele adora fazer isso, ao invés de vir até a porta -, traz pão e queijo e entra pra dentro do meu quarto e pergunta se eu posso fazer um café e, bem, Johnny, o gás acabou, hm, droga, ele responde, tudo bem, vou fazer um café e já volto e, dessa vez ele sai pela porta, e vai pelo quintal até a outra construção, alguns minutos se passam, ele retorna com o café, nós comemos, eu sonho com costelas de porco, mas, bem, já são quase três da tarde, era muito mais apropriado mesmo um café e Johnny pergunta que livro é aquele e lhe conto tudo que posso me lembrar sobre Pickett, o marinheiro e suas aventuras, principalmente as que ocorrem no mar, mas também algumas em terra e ficamos um bom tempo por ali, mas sei que logo mais algo acontecerá, é sábado, Johnny provavelmente tem alguma idéia, bem, olho para o pão e para o queijo e tenho vontade de chorar, é estúpido, claro que é, e, se fôssemos realmente adultos, Johnny diria, bem, meu amigo, como é que você vai fazer? Talvez eu dissesse a mim mesmo: o que é que você vai fazer? Mas nenhum de nós diz nada, seguro meu choro, Johnny faz que nada está acontecendo, penso comigo mesmo: e esses poemas que escrevi no último ano, por que não os publico, mas penso, quem são os leitores de poesia, como é que realmente participo do mundo, a poesia é uma maneira, é possível? Havia gente fazendo sucesso pela cidade, havia meios de se arrumar fazendo alguma coisa dessas, eu sabia, tinha visto já espetáculos pela cidade, coisas com luzes, ou então belos atores, gente de altíssima qualidade, agora, e eu? Eu não tinha paciência para aquilo, me recordo até de Ben, um velho camarada, por onde ele andaria agora, por onde andaria Ben, estaria vivo ainda? Ele era um maldito bluesman, havia me ensinado muitos truques, mas nada perto do que ele sabia, quero dizer, esse velhos bluesmen não ensinavam tudo, não assim, tão facilmente, quero dizer, andei com ele numa época, eu devia estar lá pelos meu quinze, Ben era um desgraçado de um velho que estava lá pelos sessenta, perambulava por L.A. com os grandes marginais da música e, bem, ele tocava aquele violão e nunca, eu disse NUNCA, dobrou-se à guitarra elétrica e, pode acreditar, perdeu muita coisa por isso, eu pensava, mas que velho teimoso e burro de uma figa, muitos caras já estavam saltando pro sucesso, sucesso de verdade, grana no bolso, carros da pesada, por terem passado para o outro lado, mas, o velho Ben, ele não, o maldito não arredava pé e, lógico, curtia as noites como ninguém, tudo muito natural, natural demais para mim, eu não conseguia dar conta daquele ritmo, daquela cultura moldada lentamente por séculos, uma espécie de espontaneidade forjada pelo tempo & história, por isso percebi que o meu blues tinha que ser diferente, eu não podia apenas fazer uma cópia daquilo, ele vivia como cantava, mas, como eu dizia, o velho Ben tinha um negócio de permanecer puro, entende, como se aquele fosse o seu espaço, aqui ninguém vai mexer, seus pulhas, e na época eu realmente não podia compreender aquilo, mas, bem, é isso, uma coisa realmente complicada, mas sábado, SÁBADO, diz Johnny, saímos pelas dez da noite, andamos algumas quadras, tomamos o trem, chegamos ao East Village, Johnny diz que vai comprar cigarros, ele entra em um bar, eu não consigo ficar por ali, desculpe-me, meu camarada Johnny, penso comigo mesmo, e, sabendo que ele pode fazer da noite um sonho ensandecido por ele mesmo, giro os calcanhares e me mando de volta, sem dinheiro pra o trem, disposto a andar até minhas pernas caírem, como em um maldito filme de Enrique Días ou num romance famoso de Gray Homer.

2 comentários:

Q. disse...

Você sabe que sempre acreditei em Johnny. Sempre.

Marcos Cruz disse...

Me fez sentir em casa...