sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Apresentando July Moon


Vamos dizer que July Moon tinha uma risada engraçada, um tanto abobada, os pés um tanto longos; as pessoas davam de ombros para o que ela dizia, muitas vezes - isso quando notavam que ela tinha se pronunciado. Do lado do corpo pendiam seus braços finos que se moviam como duas enguias melancólicas. Não era feia, do jeito dela até era bonita, mas era desengonçada, sem sal; tinha pernas torneadas, mas muito brancas, que iam dos tornozelos bonitos até o quadril fino. Os ombros eram largos para o tórax mirrado. Passávamos algumas noites ouvindo vinis que ela ganhara do irmão, antes que July fosse estudar em outra cidade; ela tinha uma porção de vestidos e colares e maquilagem, mas só vestia jeans e camisetas e tênis surrados; então, em certas ocasiões, minha irmãzinha, quando estávamos a sós, se metia dentro daquelas roupas de mulherzinha, e corríamos pela enorme casa dos seus pais e vez ou outra até eu mesmo usava aquelas roupas e ela me maquiava e escorregávamos pelo corrimão a margear a escada que ligava o andar de cima à sala de estar e representávamos personagens e, claro, certa vez passei um certo apuro, July me passou um tipo de batom, novidade na época, e não sabíamos que o maldito negócio tinha duração de 24 horas, um incrível invento do homem moderno para a mulher moderna e então eu era um homem moderno com os lábios besuntados de um insistente vermelho e tive que chegar em casa – naquele período ainda vivia com meus pais – com a boca realmente fechada e me mover sorrateiramente até meu quarto; mas logo July tinha seus acessos de asma e nossas corridas precisavam parar e ficávamos em silêncio, mas aquilo não era necessariamente uma parada, apenas uma mudança de marcha, porque continuávamos como o velho navio de Pickett rasgando o mar, o mar abraçando o navio dele, mesmo que, então, num movimento mais sutil, lento, quase estagnasse, como se nos déssemos conta de que o sol num momento está ali e, então, voi lá, chega ao outro lado, ou uma flor num dia se encontra ainda como botão para aparecer aberta no dia seguinte, etc, e às vezes fazíamos sexo, sem tanta voracidade, mais como um certo hábito, porém não por obrigação, nada disso, não, apenas porque estarmos juntos era quase o mesmo que se tocar, sozinho, à noite, tranqüilamente, no silêncio do seu quarto e além de atravessarmos algumas noites daquela maneira, também nos encontrávamos na praça 3, em frente ao Maxi´s; eu ia ter com ela, depois conversar sobre os carros que eu nunca tive com outros sujeitos que também não os tinham.

Era uma cinéfila incomparável, me apresentou Enrique Días, começou por aquele filme em que os caras todos não tinham emprego e ficavam de boa, no bilhar, mas, lógico, algo começava a dar errado rapidamente, a marcha concreta do Grande Fantasma ia empurrá-los todos em direção ao abismo, coisa e tal, e o filme era realmente incrível, desde então adoro Enrique Días - algo que nos acontece ao redor todos os dias, como nunca percebemos? - saí de lá me perguntando e quis fazer cinema, porque Enrique Días era um gênio amado por todos os intelectuais e porque July o adorava e porque ela vivia através daquilo, mas, bem, como eu poderia me atrever? Nem mesmo ela se atrevia, acabou indo estudar coisas de escritório, como o pai dela havia planejado, e aquilo já era bastante, afinal, nem todas as meninas iam estudar, mas não era tudo, o pai dela também lhe dizia que arranjasse um homem sério para casar e, bem, o que era seriedade, então? Não que eu me ressinta, mas July acabou por casar com Tony McFries, um bestalhão da universidade, não um jogador de futebol, nem um garanhão, mas o filho de Henry McFries, um dos parceiros do pai de July no golfe, pensando bem, até um cara bacana, cheguei a beber umas cervejas com ele vez ou outra, mas, sinceramente, nunca achei mesmo que o negócio dele fosse July, enfim, sei que Johnny fora tremendamente apaixonado por ela durante muito tempo, tive que ajudá-lo quando ela se foi, meu camarada sentiu muito mais do que eu, embora eu fosse mais próximo dela, mas, claro, éramos apenas bons amigos - July & eu -, jogávamos damas por horas e ali estava algo que realmente nunca mais consegui fazer, nunca fui afeito a esse maldito jogo, mas, como entender, as pedras deslizavam, o tempo parecia estofado e tinha um cheiro bom quando eu jogava damas com July e ela cortou os cabelos certa vez, do comprimento dos meus e compramos armações idênticas paras os nossos óculos, quem vai entender?

O fato é que McFries voava a trabalho daqui para Europa constantemente e trazia colares e brilhantes para minha irmãzinha – chegou a trazer vinho do Porto para mim, certa vez -, e nos levava para assistir a coisas (ruins) na Broadway e conhecia alguns diretores por lá e insistiu que eu entregasse alguns dos meus escritos e o fiz, mas os caras devem ter achado todo o meu esforço artístico um engodo, infelizmente, pois, do contrário, talvez eu tivesse algum dinheiro no bolso agora, mas, que importa? Fato é que, no primeiro ano de casamento, eu via July muito mais do que McFries e o próprio Johnny teve oportunidade de dar um pouco de vazão à sua paixão por ela, mas eis que certo dia Johnny subiu correndo pelas escadas, merda, merda, o pai dela, O PAI DELA! E, sim, lá estava Sr. Moon chegando alguns segundos depois de meu camarada Beefheart, os olhos esbugalhados, achando de muito mau gosto que eu e July estivéssemos com roupas muito parecidas: a única diferença uma gravata que ela havia gostado muito, adornando o colarinho de sua camisa e, sim, tivemos que sair de lá imediatamente, July obrigada a ir para França, onde seu marido a aguardava; nos falamos por cartas desde então, o próprio Tony me enviou uma pedindo desculpas, mas Sr. McFries não tinha gostado de saber - informado por Sr. Moon - de que sua nora estivesse recebendo a visita de dois caras na ausência do marido, principalmente de dois pés-rapados como eu e Johnny Beefheart, o larápio escalador de árvores & muros. Ele pensava que isso talvez interferisse nos negócios, na época não se sabia que os negócios extrapolavam coisas como família & etc.

July quase nunca tocou no assunto de ter que sair às pressas e, quero crer, contra própria vontade, da casa onde fora criada, para longe dos amigos, para morar em uma terra distante, junto a um homem que nem ao menos despertava algum interesse nela, muito menos algum desejo. Era o jeito dela, acho, não dizer. Vivo me lembrando de uma história que Johnny contou a nós, numa dessas noites em que ficávamos os três fumando e bebendo, largados na varanda da enorme casa do Sr. Moon, algum episódio da infância: Johnny disse que era um garoto quieto e criou fama de valentão no pedaço onde morava, porque certa vez passava com mais dois colegas numa parte do bairro onde não tinham amigos e foram cercados por um bando de garotos e, lógico, o negócio era pernas pra que te quero, os dois camaradas de Johnny se mandaram, mas ele disse que não conseguiu. Simplesmente não se mexeu. Ficou ali, com cara de tacho e, bem, o bando o cercou e passaram rapidamente de intimidações para empurrões e tapas e então socos e pontapés e Johnny disse que não conseguia correr e nem se defender, ficou apenas ali, recebendo os golpes, quase impassível, e os caras aos poucos se cansaram, porque Johnny não revidava e também não chorava, nem implorava para que parassem, ele disse que então, ao contar a história, lhe vinha uma imagem estranha à mente, ele pensou que parecia um zumbi, mas então lhe deixaram ali, meio caído e se mandaram; os dois colegas, que viram tudo de longe, voltaram e lhe deram uma mão para andar até em casa e os ferimentos não passaram, por sorte, de um olho inchado, um dente perdido, um cotovelo esfolado e alguns arranhões e esses mesmos colegas espalharam pela rua que Johnny não se rendeu e nem fugiu, que era uma maldito louco valente e que todos deviam lhe respeitar, porque ele enfrentaria o exército germânico sozinho se fosse o caso, mas Johnny disse a nós que não era coragem, não era nada, ele simplesmente não tinha conseguido se mexer.

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