sábado, 9 de maio de 2009

Apresentando Ginger Honeyspoon, morta ao ser atropelada em uma avenida em Nova York - segunda versão.

Sim, Josh me ligou às duas e quarenta e tantos, naquela terça-feira, numa fase em que eu me encontrava desempregado, e eu mal havia pegado no sono, mesmo assim, no instante em que ouvi a voz de Josh, não o reconheci, não compreendi nada do que ele dizia, e conseguia pensar apenas em castrar os gatos de toda a cidade, porque cantavam "nós gatos já nascemos pobres" o dia inteiro, como se me convidassem para cantar junto, porém eu não podia, ou achava que não podia, minha mãe vivia me ligando para saber se eu já tinha um novo emprego, Sr. Landblood vivia me procurando porque o aluguel estava atrasado - de novo - e eu sabia, logo Johnny apareceria, ou qualquer um de meus amigos, e algo iria acontecer, e eu já não sabia direito o que estava fazendo da vida e, sim, aquilo era ridículo, que diferença fazia se o telefone tocava às duas da tarde ou às duas da madrugada? Mas, para mim, aquilo se tornava cada vez mais apavorante, os dias em que minha sobrevivência me parecia ameaçada, como se um tiranossauro pudesse entrar porta adentro e me devorar, então finalmente reconheci a voz de Josh, esqueci os gatos, e ele me disse que Ginger havia sido atropelada, mas que, aparentemente, não havia sido nada grave; quase perguntei qual o motivo dele me ligar para me contar aquilo, mas evitei ser rude, e Josh me informou que se encontrava no Norte, com sua cia. circense, e tudo ia muito bem, mas, por isso mesmo, não poderia retornar ainda, sendo assim, perguntou se eu não poderia visitar Ginger, sim, amanhã, Josh, claro, e ele me perguntou se eu não poderia ir já naquele momento, porque as noites em um hospital eram mesmo muito solitárias e ninguém ainda havia feito uma visita a ela, então, dessa maneira, coçando os olhos e bocejando, respondi afirmativamente, e então desliguei o telefone e fui ao banheiro, tomei uma ducha, e pensei se aquilo tudo não era um sonho esquisito e quase liguei para Josh para confirmar, porém tive vergonha e carreguei a bicicleta até a rua, não sem antes comer um sanduíche de queijo do dia anterior que eu havia guardado na geladeira e agarrar minha mochila e nela botar um livro de Fireburn, o poeta cego, para dar de presente a ela.

A noite estava úmida, o asfalto ligeiramente molhado pelo orvalho; pedalei lentamente pela rua, atravessei a 23, entre os moradores de rua e as meninas da Central, 10 mangos a chupada. Parei numa loja de conveniências, na esquina com a 21, comprei dois maços de cigarros, a noite seria longa, entreguei uma nota de 10, o troco peguei em balas, mandei uma para dentro, era doce demais, fiquei enjoado, cuspi fora o negócio, enquanto montava na bicicleta, depois guardei as restantes no bolso, talvez Ginger gostasse, segui em frente, uma ambulância rasgou a Avenida, em frente ao Finger's, no mesmo local onde certa vez Ginger havia me deixado esperando horas, a pilantra, e então, é óbvio, iniciei uma longa viagem nostálgica, imaginando a primeira visão que tive de Ginger, cerca de seis anos antes, numa dessas noites enlouquecidas, e lá se encontrava ela, no Martin's, seus olhos perdidos e seu jeito confuso de dizer se gostava ou não das pessoas já ficara tão claro para mim naquele dia, e aquilo parecia problema à vista, mas havia também suas pernas tão bem desenhadas e seu jeito fluido de se mover, e seu interesse em poesia, então, já naquela noite as coisas ficaram bem estranhas para mim, se é que você me entende.

E como Ginger terminaria ficando com Josh? Bem, naquela época Ginger era apaixonada por Lincoln F. e Lincoln F. era apaixonado pela guerra que acontecia do outro lado do mundo; Lincoln F. acreditava piamente na Liberdade e havia se alistado como voluntário nas fileiras da legião estrangeira à favor da Birtsmânia, combatendo os terroristas sloveínos, sendo assim, Ginger enviava longas cartas de amor repletas de perfume de rosas para ele, e recebia como resposta raros bilhetes enxutos e telegramas de uma linha, e, desta maneira, penso poder formular a seguinte seqüência matemática: Pedro - Ginger - Lincoln F., porém, tal lógica seria derrubada logo com o fim da guerra, posto que, Lincoln F., de retorno, pediu Ginger em casamento e foi veementemente rejeitado, situação em que, finalmente, tive uma chance, sendo esta, obviamente, aproveitada, o que fazia a fórmula se tornar, então, Lincoln F. - Ginger - Pedro - Ginger, mas aquilo duraria realmente muito pouco, porque Pedro, quero dizer, eu, trouxe Josh, um amigo que eu havia conhecido na fronteira com o Canadá, sem imaginar o que aconteceria, para esta maldita cidade e, na seqüência, logo teríamos Pedro - Ginger - Josh - Ginger, o que destruiria meus planos com Ginger, e que me lançaria de volta a Elsie, para que morássemos juntos uma vez mais, não sem antes eu experimentar o inferno que é se sentir rejeitado e etecétera e isso me faz lembrar de Riverside, aquela maldita noite em que nos atrasamos e tivémos que dormir em um hotel de beira de estrada, então Ginger quis um quarto com duas camas e tudo estava bem, eu sabia exatamente em que pé as coisas andavam entre nós, mas, então, subitamente, antes de dizer boa noite, ela perguntou se eu não queria dormir com ela, e, bem, rapaz, não se nega o pedido de uma garota, não é mesmo, e yes, é claro, me deitei tranqüilamente ao lado dela, num movimento misto de quem ainda tem apenas treze anos e não sabe exatamente o que fazer e de quem é o dono do galinheiro, e, na seqüência, depois de alguns minutos, beijei-lhe os ombros e recebi uma espécie de solavanco no rosto e, é verdade, tentei mais uma ou duas vezes, afinal, aquilo poderia muito bem ser uma espécie de jogo, e era, mas não do jeito que eu imaginava, sendo assim, passei a noite olhando para o teto e, mais tarde, liguei a TV, sem arredar pé daquela maldita cama, e passava o desenho de Jimmie, o filhote de ornitorrinco, e naquele episódio, Jimmie encontrava-se só em casa e, enquanto Martha, a mãe ornitorrinco, não retornava, Jimmie resolveu comer todos os biscoitos que ficavam em cima do armário e, sendo aquilo demais para ele, acabou por vomitar tudo na pia, indo, logo depois, se esconder detrás do aparelho de televisão - aquele era seu local favorito para se esconder, porque ficava quentinho, quando a TV se encontrava ligada -; mas então a manhã despontou e saí da cama, andei até o banheiro, lavei o rosto, escovei os dentes e chamei Ginger, tínhamos que pegar a estrada.

Com aquelas imagens na mente, resolvi fazer andar o programa que estipulei enquanto tomava aquela ducha, após a ligação de Josh, o que significava descer a bicicleta até a rua, comprar cigarros, e estabelecer uma parada onde eu pudesse escrever algo a Ginger, na contracapa do Fireburn, antes de chegar ao hospital, e aquele local parecia mesmo propício para esta etapa da epopéia, uma praça com um banco instalado abaixo de um poste; desta maneira segui até o banco e me acomodei no lugar; quando abria o livro e pensava em algo, dei com um gatinho malhado, um filhotezinho desgarrado da mãe, e, como ele parecesse triste e faminto, botei-o dentro da mochila, Ginger vai gostar de você, bichano, vai te dar um nome, banho, leite, e brincar contigo, e comecei a escrita sem nenhum planejamento do que queria realmente dizer a ela.

Nunca vou me esquecer de Movetown, aquela temporada em que fizemos tanto, querida, lembra-se de Louie e Fred e Camilla, com seus cabelos curtíssimos? Fico pensando quão difícil às vezes parece ser falar sobre aqueles tempos, quero dizer, acho que você entende, embora, eu mesmo, muitas vezes não saiba bem o motivo desta dificuldade. Me recordo daquele dia em que atravessamos o rio para nos juntarmos ao pessoal-antes-odiado-do-Flitsburn, que surpresa aquela festa que antes parecia impossível, e agora estávamos lá, dançando e nos divertindo a valer com nossos ex-rivais - e eu já me pegava falando daquele jeito esquisito de Flitsburn e pensei: UAU! Isso está realmente acontecendo? O que o futuro nos guarda, isto é, se isso é possível, o que pode vir "depois", eu me perguntava, porém, querida, eu não percebi que era ali a coisa toda, não havia "depois", afinal, há quanto tempo não vejo Flitsburn? Nossa, há muito tempo, mas, e então? E eu pensava tanto como a vida seria para nós dois, Ginger, isto é, íamos ter filhos, viajaríamos o mundo, roubaríamos bancos juntos, viveríamos sem casa, morando aqui e acolá, seríamos famosos? E você estava realmente deslumbrante, naquele dia, como em todos os outros, mas naquele dia, naquele dia, oh, droga. E nem me dei conta de como era descer aquele rio, como foi que o descobrimos, quero dizer, ele esteve sempre ali, mas a gente demorou a perceber como poderia ser bacana descer a corredeira de barco, e descobrimos, cada descida era uma primeira vez e era preciso se molhar de verdade para conseguir vencer aquela imensidão de água, entrar nas ondulações da coisa toda, o rio, lembra-se? Bem. Nesse momento sigo para o hospital, crendo que certamente você está bem, o que me permitirá, como decido agora, neste exato momento, deixar apenas esse bilhete escrito nesse livro - é aquele Fireburn que você uma vez havia pedido emprestado, como você já deve ter notado -, evitando, assim, que nos encontremos, o que causaria uma situação constrangedora e desnecessária. Com amor, Pedro.

Então gostaria de fazer um salto temporal - ah, as técnicas narrativas -, sou eu de retorno do hospital, empurro a bicicleta e rio um bocado, na verdade, em algum instante, sinto que nunca vou conseguir parar de rir, e é nesse momento que paro sobre a ponte Horksheirer e digo, sem motivo aparente, para mim mesmo: nossa literatura se tornou apenas uma narrativa do quotidiano, sem ao menos imaginar o que quero dizer com aquilo, e, sendo assim, logo depois, atiro o livro de Fireburn o mais longe que consigo, penso na voz rouca da recepcionista do hospital, Ginger Honeyspoon? Lamento, senhor, mas, infelizmente, ela não resistiu à cirurgia.

Tudo isto narrei, desta exata maneira, a Bill e Virginia, em um bar, antes mesmo de me embebedar, porém, omiti que, Ginger, na realidade, se encontrava, naquele momento mesmo da narrativa, trabalhando como dançarina em alguma casa no Leste, ganhando pouco, mas aparentemente bem, ainda em forma, talvez apenas um pouco mais silenciosa do que de costume.

Um comentário:

. disse...

- Feliz aniversário, Ginger.