terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Mais um capítulo, parte I

Você precisa saber, sim, é verdade, a coisa toda começa quando Johnny surge com essa idéia de roubarmos laranjas em Salt Lake, quarenta quilômetros dali, onde há toda uma grande plantação destinada ao mercado saudável de suco integral, e Johnny obviamente já tinha arquitetado praticamente todo o plano, recolheríamos dez ou doze caixas das melhores laranjas do país, aquelas grandes e suculentas e amarelas laranjas típicas do Sul, e venderíamos todas na feira, agora, é óbvio, não possuíamos um carro para o empreendimento e possuir um carro, nesse caso, era realmente imprescindível, e aí entrava Bill, alguém sempre de vista límpida, analisando a situação e concluindo que precisávamos apenas "emprestar" um possante sempre que fosse momento de "repormos nosso estoque" e que, ao ter um carro em mãos, deveríamos usá-lo com sabedoria, o que significava, além de aproveitá-lo para o transporte de nosso produto, que também usufruiríamos do tal para outros fins de maior importância, como passeios noturnos e rápidas investidas ao litoral.

E, sim, Bill não se encontrava conosco no dia D e, além desse pormenor considerável, eu me sentia, a princípio, cansado como os diabos, afinal, menos de uma hora antes eu havia estado no escritório, eu, uma mesa, um carimbo e a partir disso é desnecessário explicar a coisa toda, você certamente já sacou, mas, embora o cansaço e a ausência de Bill se fizessem sentir, Johnny e eu sabíamos, éramos grandes homens que se encontravam à beira de mais um passo decisivo em suas vidas, uma típica situação comum para as pessoas empreendedoras, da mesma maneira que havia ocorrido com nossos corajosos antepassados que por aqui haviam estado a construir um mundo mais nobre e civilizado, como o famoso Don Laerte, o espanhol, Don Laerte e sua barba hirsuta e seus cabelos hirsutos e sua alma hirsuta e, bem, se não havia Bill, a parada devia ser encarada por Johnny e eu, e o fizemos com a maior determinação possível, afinal, éramos homens com os olhos em direção ao oeste, ouro, meu camarada, ouro, e como um pioneiro dos tempos de Hick Hook Neel, Johnny apontou para um chevrolet azul e demos alguns passos na direção de nosso Eldorado, Johnny na frente, enrolando um arame em sua mão direita, perguntando-se como deveria usar o arame, e não se tratava de uma questão destinada a mim, mas a ele mesmo, tecendo uma espécie de auto encantamento, parecido com os mantras que os comanches sussurravam para si próprios, na iminência de uma batalha, e na seqüência um homem apareceu, seu rosto branco e gordo colocado na fresta do portão, parecia que ele estivera sempre ali, desde os mais remotos tempos, muito antes do chevrolet azul e Johnny e eu e o próprio portão existirem, e, ao sermos questionados por esse homem das nossas intenções para com o carro, apenas olhamos entre nós, Johnny e eu, e meu camarada mandou uma história terrivelmente inverossímel de como seu pai havia morrido em um acidente, quando se dirigia a Nebraska, um acidente envolvendo uma carreta e um carro idêntico aquele e de como seu próprio pai, depois de morto, assombrava-lhe pedindo que comprasse um chevrolet azul e terminasse a viagem a Nebraska, e, bem, será que o bom homem não se prestaria a lhe vender o automóvel e é claro que o homem disse um sonoro "não", e sentimos como se, a qualquer momento, se fizéssemos qualquer movimento errado, presenciaríamos aquele homem a mandar seus vinte e oito amigos boinas verdes saltarem de trás das plantas do belo jardim da casa para que finalmente nos matassem, depois, é claro, que também nos torturassem para que entregássemos os outros integrantes da nossa quadrilha internacional e, sendo assim, Johnny e eu giramos os calcanhares em direção ao primeiro bar que encontrássemos porque precisávamos de uma partida de bilhar e um trago, a noite estava sendo dura demais conosco.

A caminho do bar, é verdade, em algum momento aquela sensação apareceu, a mesa e o carimbo, mesmo ali, no excelentíssimo meio fio, enquanto eu galgava o mundo ao lado de Mr. Beefheart, meu Johnny, e ele criteriosamente mastigava um chiclé encontrado no bolso da calça e havia Dona Ruth, sim, Dona Ruth, porque Dona Ruth, despedida ainda naquele mesmo dia, um pouco antes da minha aventura em busca do chevrolet azul, possuía as melhores pernas, as mais torneadas maravilhas de todos os escritórios da Life Co., sendo Life Co. a mega coorporação onde eu trabalhava à época, e lhe digo, não havia nada mais agradável para se fazer nas oito horas que eu permanecia dentro do prédio sede da Life Co. do que apreciar as pernas de Dona Ruth... nem mesmo o cafezinho era tão agradável do que a imagem das pernas lisas e provavelmente cheirosas de Dona Ruth, sim, provavelmente cheirosas, eu nunca tivera o prazer de me aproximar tanto das pernas desta distinta senhora, e, uau, mas, então, nada mais havia para se ver naquele lugar, eu tinha perdido as pernas de Dona Ruth e Dona Ruth tinha perdido seu emprego, como ela compraria creme para cuidar da pele? E, meu amigo, QUE PELE MACIA AQUELA, até me lembrava a história de Maxwell Krakatov, o famoso serial killer que, naquela época tinha deixado toda a nação de cabelos em pé, o maluco sequestrava as mulheres e lhes arrancava a pele, colecionava as peles das suas vítimas, por Cristo, um obssessivo, aquele doente, mas, enfim, aquilo tudo me fazia pensar que eu não agüentaria por muito mais tempo, trabalhar para comprar comida e comprar comida pra trabalhar e ainda me encontrar destituído das pernas de Dona Ruth. Era demais.

E Johnny me tirou por um momento daquela imersão no fundo do pântano cíclico da morte, me cutucou e dispôs um copo de uísque para mim, é por conta da casa, gracejou, e, a seguir, pediu uma ficha para o garçon, mandamos ver no bilhar, o bar vazio, agradável, nos incentivava a permanecer e permanecer, e assim foi, mas logo me lembrei da Life Co. novamente, porque sim, Life Co., meu amigo, e eu contei tudo a Johnny, e ele trouxe mais uísque, e Johnny parecia estranho, lacônico de um jeito que ele não costumava ser, porque quando digo lacônico e me refiro a Johnny, não menciono a ausência de palavras, quero dizer que Johnny se apresentava com um típico silêncio à la Johnny, que é o da ausência sim de acrobacias, e eu não conseguia apreender os motivos daquilo e ele balbuciou em algum momento, as laranjas, as laranjas. Bem. Devia ser já alta madrugada e apesar da atmosfera agradável e tranqüila do bar, a noite não engrenava, nada se movia, havia as bolas coloridas do bilhar, os tacos do bilhar, o garçon, um freguês, outro, mais um, Johnny, eu, as laranjas, a Life Co., cada coisa em seu lugar; mesmo uma bela mexicana que chegou acompanhada do namorado não movia uma palha sequer, ela se sentou ao lado do namorado, o namorado se sentou do lado dela, os olhos dela estavam acima do nariz, o nariz acima da boca, a boca acima do queixo e assim por diante, como deve ser. Suspirei em algum momento e já era muito tarde, fui a pé para casa e, quando deitei, o relógio marcava quase quinze para as seis e, como verdadeiro trabalhador que era, acordei às seis em ponto, firme até onde poderia, e foi neste estado que escorreguei pela cama; quando dei conta de mim, havia uma multidão dentro do trem que me cercava, me acomodava em pé, e assim dormi, e assim terminei em Point Ville, já sentado em um banco, sem saber como, há vinte quilômetros da Life Co. Jesus! Tive um pesadelo terrível durante esse cochilo, no meio da barriga, Dona Ruth tinha uma boca enorme e de lá uma voz medonha dizia coisas terríveis e Dona Ruth depois arrancava meu pau com as mãos ágeis de datilógrafa e dava o negócio para a boca comer e, rapaz! Eu estava realmente muito atrasado! Decidi não trabalhar, vomitei em uma lixeira, bebi um café, comprei uma passagem de volta, retornei dormindo todo o caminho, minha cabeça doía, quase passei direto pela estação onde devia saltar, saltei, parei em uma lanchonete, tomei um desjejum digno, olhei para a rua, havia um sol tímido, senti-me forte, um verdadeiro touro selvagem do oeste, assobiei para um garota que passava na rua, ela sorriu para mim, resolvi parar na casa de Lincoln, meu camarada Lincoln, e torci para que a idéia das laranjas realmente desse frutos.

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