segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Carta de Virginia Marton a Pedro Miguel

Querido.

São quase seis horas aqui em San Antonio, mas o calor nos faz pensar que ainda é meio dia. Louise, como de costume, acordou cedo. Mas não deu caminhada alguma, por aqui não vale à pena gastar energia andando à toa por aí, a não ser à noite. Ela ajudou Mrs. Marton a lavar roupa, e depois dependuraram os lençóis nos varais, você se recorda daquela imagem da sua infância, que também é da minha infância, longos varais e roupas secando ao sol, um longo gramado? Me fez lembrar de ti e tenho tanto pensado no que faremos quando nos reencontrarmos, Pedro. Bem. Depois almoçamos e então fiz massagem nas costas dela, para aliviar a tensão dos braços, ela não está acostumada a trabalho duro, não é como nossos avós. Mas ela, ao menos, tem se dado melhor com o calor do que eu. Passo os dias imprestável, largada sobre a rede, lendo e relendo Song of myself, aquela edição que você me emprestou e que precisarei repor, porque está toda amarelada, com as folhas todas se soltando, de tanto que me aventurei por ela, ela agora minha, não há mais volta, querido, ela cheira a eu mesma, mas não se preocupe, lhe comprarei outra assim que nos revermos.

Não é que eu imaginasse que fosse ser diferente. Não é também que eu achasse que fosse ser entediante. Não tinha expectativas, para ser sincera. Já Louise... Palavras dela: "Não sei como serão as coisas por lá, meu amor, tenho medo de que tudo se acabe, que eu não consiga ser alguém suportável, que todos me odeiem, porque eu mesma - eu - talvez acabe virando um bicho e das duas, uma, ou me trancarei em mim mesma, a dormir em algum canto os dias todos ou então atacarei qualquer um que cheire um pouco diferente, que se aproxime da minha comida ou das minhas crias." E eu disse a ela que não se preocupasse, quando as coisas ficassem estranhas, nós poderíamos jogar damas - porque eu jogaria damas com ela sempre, sempre - e relaxar ouvindo Chet. No fim, tem sido um pouco assim mesmo, temos passado as tardes jogando damas, quando não nos metemos a ler - eu, o meu Whitman, e ela as dezenas e dezenas de livros que trouxe (me fez carregar uma mala extra cheia de edições de escritores irlandeses, é uma obssessiva, a mulher). Mas não é só isso; Louise tem tido dias repletos de afazeres, ela tem se entendido bem com Mrs. Marton e com Anne, fazem compras juntas, lavam a louça, cozinham; depois ela vem sempre com um risinho engraçado pra cima de mim, como se dissesse que aquilo não é tudo, que aquilo é apenas algo que ela está experimentando. Não sei, de qualquer forma, tem sido bom para nós duas. Muito bom, Pedro, como há muito eu esperava que fosse.

Mr. Marton tem ficado pra cima e pra baixo com meu irmão, Josh. Isso é bom, você sabe. Ele nem tem se lembrado das dores nas costas, no peito, nas pernas. Os dois vão pra lá e pra cá, bebem uma cerveja, assistem o futebol na TV, encontram algo para arrumar na casa. A bebê está muito bem, já engatinhando pelos cantos, louca para sair pela porta e se ir deserto adentro. E o deserto, querido. Lousie e eu temos flertado com a estrada, loucas para ir adentro, até o México. Mas temos medo de que isso seja apenas um apelo, hm, rebelde. Você sabe. Acho que se em algum momento houver um chamado, iremos. Mas, por enquanto, é tudo. Quero dizer, não é tudo. Não te contei ainda que tenho passado as noites jogando bilhar, você não acredita, juntei uma grana legal, demolindo um por um dos campeões da região. Eles não conseguem entender. Uma mulher! Numa noite dessas, Lousie e eu entramos num bar e começamos a beber tequila. Já estávamos um tanto bêbadas, quando Louise quis jogar, há muito eu não jogava, mas não consigo resistir, você sabe. E compramos umas fichas. Quando vi, eu estava apostando grana - saí de lá trintas dólares mais rica! Depois disso, comecei a ir quase todos os dias de bar em bar, eles já me conhecem, lá vem ela, the damned woman. Rá. Se prepare, porque quando eu voltar, talvez compre um carro e aí sim valerá à pena ir ao México.

Com amor,

Virginia.
PS: Lousie não escreveu uma carta para você, ela escreveu um parágrafo e me pediu que o copiasse aqui e disse que te ama.
"Neste lugar as mulheres trabalham como bestas e não há novidade alguma nisso, a não ser o fato de que, aqui, tenho agarrado a vida com as mãos; não sou como elas, elas não são como eu, mas tenho trocado olhares como eu nunca pude trocar com qualquer uma dessas mulherzinhas aí: tenho lavado roupa e costurado as roupas dos homens e isso tem sido muito mais do que uma atividade diária, uma outra coisa. Não é que eu finalmente saiba que não há o que temer, não posso dizer que encontrei-me e também não posso dizer que agora saio de mim para me encontrar com todos os outros, não é isso, mas, parece, algo em mim fez fortaleza, e não são muros, são pontes. Já vistes uma fortaleza de pontes, meu amor? Uma delas cruza essa América e termina aí, em Jersey."

Um comentário:

. disse...

Ow, puxa.
Se no lugar de "jogar damas" estivesse escrito "jogar buraco", eu ficaria extremamente assustada. Ex-tre-ma-men-te.