terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Apresentando Bill.

Devia ser o quê? Umas três da manhã? E estava tudo bem, Bill se encontrava sobre os dois pés, abaixado, de cócoras. Eu encostava, sentado, na parede de azulejo azul da cozinha do apartamento de Julie. As outras pessoas dormiam, algumas na sala, algumas no quarto. Acendi um cigarro. Bill se movia, trocando o apoio de um pé para o outro, freneticamente, falando pelos cotovelos, como de costume. Horas antes, havia andado pelo apartamento, falado, apontado as coisas, questionado as pessoas, feito considerações, "noite inesquecível estamos tendo, não?", puxado as meninas para dançar. Eu mesmo acabei também dando pulos de um lado para o outro quando colocaram Hollie Barnie para tocar, mesmo que, em algum momento, algo distante me fizesse pensar de que talvez aquilo não fosse apropriado. Enfim.

Não sei se alguma vez já contei sobre Bill. Ele vem de uma família grande, nove irmãos ao todo. Fomos apresentados por alguns amigos em comum, pessoalzinho metido a escritor, gente como eu e também como ele. Mas Bill nunca se prestou a sentar em frente a uma máquina de escrever. Sempre perguntava sobre nossos trabalhos, lia nossas tentativas, falava de grandes histórias que foram e seriam contadas. Disse que já tinha muitas coisas para escrever - isso aos vinte e tantos anos! - porque tinha atravessado o país duas vezes. Mas nunca botou as mãos sobre uma folha em branco para contar essas histórias. Quando o conheci, Bill chamava-se Memphis. Sim, não sabíamos o verdadeiro nome dele. Memphis era um espertalhão viciado em 21 - melhor, um viciado no jogo que vivia espertamente das apostas do 21. Havia fugido de L.A. porque tinha sido jurado de morte e contava essa história obscura de um pessoal da máfia que queria apagá-lo, fugas pelas estradas, tiroteios, mulheres perigosas - ele tinha uma história incrível sobre Mary Burton, que ele dizia ser uma espécie de viúva negra, milionária que se casava todos os anos, porque seus maridos morriam invariavelmente após alguns meses de casamento das causas mais absurdas - um deles morreu engasgado com uma borracha escolar! - e o pior é que ela sempre arranjava um marido rico, mesmo que todos soubessem quão fatal era a companhia dela. Nessa época, descíamos Bill e eu até a Praça 22, dependurados nos trens, para não pagarmos passagem, e passávamos horas jogando pedras no Grande Lago. Queríamos saber se lá existia mesmo um monstro e uma vez Bill jurou ter visto uma cauda verde e escamosa que depressa rompeu a linha da superfície, e, claro, não acreditei. Vez ou outra flertávamos com as garotas que iam tomar sol por ali e numa ocasião eu contei a uma delas sobre o monstro e ela riu de mim, é óbvio, porque se tratava de uma história realmente absurda, mas ela atentamente me ouviu falar sobre esses seres pré-históricos que ainda viviam sob as águas e o beijo dela não era lá essas coisas, acho que os lábios dela eram finos deveras, mas ela se entregava com uma doçura que comovia. De qualquer forma, não a vi mais, porque ela se mudaria para outro estado com a família.

Depois fiquei sabendo que Memphis não se chamava Memphis e em um documento - que era falso, descobri depois - seu nome constava como Brighton Ashton. Certo, Brighton, porque Memphis? Porque eu tinha vergonha do meu nome e, bem, na realidade passei pouco tempo em L.A. - mas lhe garanto, boa parte daquelas histórias são verdadeiras. Vim da Califórnia e essa cicatriz na minha perna foi resultado de uma dentada de um tubarão perdido no Oceano Pacífico que quase acabou comigo, num tempo em que eu pegava ondas com minha longboard - não fosse minha sorte de sempre, meu camarada, eu não estaria aqui lhe contando essa. Nessa época estávamos numas de jogar futebol, também Johnny e Brandon e Rizzo. E lá vamos nós, eu realmente não tinha um físico apropriado para esse jogo, mas minhas pernas eram realmente boas e Bill me dizia, bem, vamos fazer assim, a defesa segura a bronca e eu lhe mando bolas de profundidade e você, meu camarada, veja se bote essas pernas pra funcionar, porque, afinal, sua vida é que estará em jogo, haha. E eu realmente corria e nunca vi nenhum lançador como Bill. Nem mesmo nas ligas profissionais, nem mesmo o grande Hornet Star, com suas mãos mágicas, conseguia fazer lançamentos tão bons. É sério. E vi Bill se recusar a jogar como profissional diversas vezes. Mas Bill, são contratos milionários. Apenas dinheiro, meu camarada, e sim, dinheiro é bom, claro que é, mas eu gosto demais desse jogo, acho que não aguentaria me obrigar aos treinos, aos jogos consecutivos e ganhar, ganhar e ganhar. E a bola fazia aquelas parábolas incríveis, curvas, jardas e jardas sobrevoadas e eu quase perdia a concentração porque me punha extasiado com aquelas maravilhas cortando o céu azul e lá ia eu, um zero à esquerda nos jogos universitários, ombros estreitos, compleição frágil, transformado por Bill num marcador fenomenal de touchdowns, quase um gênio possante da bola. E então Bill berrava como um louco, AAAHHH, É ISSO AÍ, MEU CAMARADA!

Também íamos ao rio detrás da casa do velho Moe, e Bill apostava corridas com Johnny, péssimos nadadores, mas ótimos comediantes, com suas braçadas escandalosas. Apostavam garrafas de uísque, ou então quem iria lavar a louça naquela semana - eles dividiram um apartamento durante uns três anos, até Johnny se casar. Eu gostava muito de ficar boiando e sentir o rio me carregando - ainda faço isso, o rio ainda está lá, mas hoje não tenho tido o mesmo gosto, acho que prefiro dar um mergulho e depois me aventurar ali pelo mato que segue rio abaixo. Bill às vezes me forçava a levar o violão e fazíamos uma fogueira e Johnny trazia batatas - ele era viciado em batatas - e ficávamos por lá e às vezes Moe aparecia e consigo Stella e Lucy, suas filhas, e era interessante como Moe não se importava se flertávamos com elas. Quero dizer, nunca aconteceu muita coisa, se não me engano Johnny uma vez ou outra se enroscou com Stella em algum canto por ali, mas nada demais. Bill era o que mais fazia piadas, claro, mas não passavam de bravatas, porque ele estava apaixonadíssimo por Ruth, uma negra de um metro e oitenta que era cabeleireira, e eu não estava tão interessado assim, apenas conversava normalmente com elas, porque as achava sem graça - se bem que houve certa tarde em que, inexplicavelmente, Lucy estava, hm, mais atraente do que de que costume, eu não sei se eu me encontrava um tanto carente ou sei lá o quê, mas o que eu mais tinha vontade na minha vida era de me deitar sobre aquelas pernas que, naquela tarde, me pareciam mais bem torneadas do que de costume e, claro, ela percebeu que eu estava diferente e ela também ficou diferente, e uma ponta de esperança surgiu para ambos, mas, na vez seguinte que nos vimos não foi do mesmo jeito e bem, é a vida.

Mas depois Johnny encontrou outro documento de Bill e lá constava: Robert Manley. E passamos então a chamar Brighton, ex-Memphis, de Bill e ele nos confessou que a cicatriz da perna havia sido adquirida, na verdade, em uma briga de bar, mas que ele realmente havia pêgo onda na Califórnia por um tempo, e então ele nos disse que vinha de uma família de nove irmãos e que seu pai era um cantor de blues, perdido em algum lugar no sudeste, tentando a vida como músico e era a sina dele ser músico também e ele insistiu que eu deveria ensiná-lo a tocar violão e então eu lhe disse que arrumasse um e dois dias depois ele me apareceu com uma linda semi acústica um tanto surrada e um pequeno amplificador valvulado e eu não faço idéia de onde ele arranjou dinheiro para aquilo, talvez executando alguma trapaça ou fazendo algum trabalho escuso e, agora, nesse momento, ele está entrando porta adentro e se ajeitando no sofá velho da sala aqui de casa e, sim, vamos ver se não fazemos algumas canções para nos divertir e até mesmo para fazer algum dinheiro, afinal, nessa terra quase tudo ainda é movido pela força da grana, sim, meu amigo, quase tudo, mas não tudo.

5 comentários:

. disse...

Bill...
Sei.

Yane Santiago disse...

Tudo ficção, é claro. Afinal de contas sou um escritor do entretenimento, crio super-heróis que serão consumidos pela massa sedenta e sobre os quais a mesma pode projetar os seus maiores sonhos, deixando de vivê-los. Deste modo continuamos vivendo esse ciclo miserável que sustenta os grande detentores dos meios de produção e seus vassalos caras-de-pau.

É sério, eu faço parte do sistema e estou enriquecendo. Hollywood me aguarda e AHAHAHAHA!...

(Nesse instante o escritor começa a babar e precisa ser retirado para a sala acolchoada.)

Anônimo disse...

nao odeie o jogador, odeie o jogo, certo?

. disse...

O que se diz cria asas, e então...
http://cambioexu.blogspot.com

Unknown disse...

Vc tem um jeito muito envolvente de escrever.
Crivel.

Obrigada pela visita ao meu blog.
Lá, deixei uma resposta para o seu comentário.